Jasmineiro.
Esperava
um ano inteiro para receber a prenda que ela mandava pelo meu pai. No dia 04 nunca
houve um esquecimento, um atraso, uma falta ou um descuido. Foram sempre até
hoje as saias e os vestidos mais bonitos que recebi. De veludo ou de bombazine
muito fino, com motivos florais, raminhos verdes, com aplicações no peito, de
patinhos, outros animais e até de um lago. É certo que depois tinha de fazer um
telefonema a agradecer e responder àquelas perguntas “sim, tenho sido uma boa
menina, sempre bem comportada, estudo e ajudo a mamã e não ralho com os manos e
rezo à nossa senhora para me proteger….”.
Mais
crescida, quando já sabia ler, passei a receber as Historias da Anita, e ao entrar na adolescência, o primeiro livro
foi as “Mulherzinhas” da Loiuse May
Alcott, Quero ser Feliz, e outras
publicações das Irmãs Paulistas.
Ela
viajava com alguma frequência e dos locais que visitava enviava sempre um
postalinho, de Fátima, do Castelo de Tomar, de Guimarães, ou do Mosteiro da
Batalha. Tinha a particularidade de contar um bocadinho da historia do local,
assim, desde cedo também fui viajando, quer pelos livros, quer pelos postais.
Ela era
uma senhora muito educada, culta, devota de Maria, gostava do mês de Maio,
alias o filho, único filho fazia anos nesse mês, gostava muito de flores, em
especial de rosas.
Faziam
um casal simpático ela grande, ligeiramente anafadinha, muito sardenta, com uma
cara bonita, fresca e com a pele muito branca. Ele baixinho, careca, com uns
óculos pretos com um fundo de garrafa
muito grande, sempre muito bem-disposto. Sentia-se que entre eles havia
amor e muito respeito.
Em Maio
era o mês da grande festa, o filho fazia anos, e todos os anos celebrava-se o
aniversário com pompa e circunstância.
Tinha
fotógrafo particular, passadeira vermelha, criados a servir com blazer branco e
laço preto e na cozinha as empregadas preparavam tudo com o maior rigor.
Lembro-me
muito bem da casa, uma entrada particular na Rua do Jasmineiro, no quintal à
frente vários canteiros de rosas de todas as cores e feitios, à entrada um
grande corredor terminava com a escada ao fundo para o segundo andar. À direita
ficava a sala e sala de jantar, à esquerda 2 ou 3 quartos que a senhora
habitualmente alugava a pessoas de muito respeito (professores ou inspectores
das finanças), a seguir a cozinha e de seguida havia um grande salão onde eram
feitas as festas de anos. Esse salão era transformado em discoteca e era aí que
pela tarde e noite fora se divertiam os convidados.
Logo à
entrada e depois de tirada a fotografia à família, passávamos à sala e íamos
ver a mesa do bolo, o tema da festa, a decoração, às vezes o filho tocava piano
para os convidados (julgo que quando era mais pequeno). Apareciam logo os
criados com cup de fruta em tacinhas
de vidro com pé alto e elegante, eu gostava daquele sabor das frutas com o sumo
e o gás da água, acepipes, canapés vários, vitelinhos, empadinhas, rissóis e
umas queijadas deliciosas que eram a receita especial da senhora.
Nestas
saletas e no jardim, ficavam as pessoas mais velhas, os amigos do casal,
família e outros conhecidos.
Lá ao
fundo no salão decorria a dança, a festa com os mais jovens, onde eu “bicho do buraco”, morria de vergonha só
em pensar entrar, rondava a casa do lado esquerdo do jardim e ponha-me à porta a
espreitar, quando dava muito nas vistas, voltava para trás e entrava pela
cozinha e ficava sentadinha num banco novamente a espreitar.
O que
eu gostava mesmo era de ir pular e dançar como os outros, mas a timidez
amputava-me as pernas e ali ficava com carinha de anjo ouvindo, e apenas
ouvindo a música, as gargalhadas, as palmas, a folia e o divertimento que todos
extravasavam sem preconceitos nenhuns.
Afinal
eram todos jovens, todos da minha geração, todos novos, iguais a mim,
entusiastas da vida e dos prazeres que dela retiramos.
Às
vezes, e mesmo no meio de tanto trabalho e atenção que tinha de dar aos
convidados, aparecia a minha madrinha, agarrava-me na mão e levava-me até ao
centro do salão e dizia “então deixaram a Luisinha ali sozinha”, então, eu sentia
o chão a fugir cada vez mais dos meus pés, a cara a fumegar, e pedia a todos os
santinhos que me tirassem dali. Não sei quantas vezes na vida morri de
vergonha, mas nestas festas, todos os anos morria de vergonha.
Hoje,
agora, acho que já não morreria de vergonha, ou pelo menos deste tipo de
vergonha. A vida foi-me trazendo um pouco mais de sal e os meus dias foram
tendo mais cor e um sabor de rebeldia que pouco agradou ao meu pai.
20.05.15
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