quarta-feira, 20 de maio de 2015

Jasmineiro.

Jasmineiro.
Esperava um ano inteiro para receber a prenda que ela mandava pelo meu pai. No dia 04 nunca houve um esquecimento, um atraso, uma falta ou um descuido. Foram sempre até hoje as saias e os vestidos mais bonitos que recebi. De veludo ou de bombazine muito fino, com motivos florais, raminhos verdes, com aplicações no peito, de patinhos, outros animais e até de um lago. É certo que depois tinha de fazer um telefonema a agradecer e responder àquelas perguntas “sim, tenho sido uma boa menina, sempre bem comportada, estudo e ajudo a mamã e não ralho com os manos e rezo à nossa senhora para me proteger….”.
Mais crescida, quando já sabia ler, passei a receber as Historias da Anita, e ao entrar na adolescência, o primeiro livro foi as “Mulherzinhas” da Loiuse May Alcott, Quero ser Feliz, e outras publicações das Irmãs Paulistas.
Ela viajava com alguma frequência e dos locais que visitava enviava sempre um postalinho, de Fátima, do Castelo de Tomar, de Guimarães, ou do Mosteiro da Batalha. Tinha a particularidade de contar um bocadinho da historia do local, assim, desde cedo também fui viajando, quer pelos livros, quer pelos postais.
Ela era uma senhora muito educada, culta, devota de Maria, gostava do mês de Maio, alias o filho, único filho fazia anos nesse mês, gostava muito de flores, em especial de rosas.
Faziam um casal simpático ela grande, ligeiramente anafadinha, muito sardenta, com uma cara bonita, fresca e com a pele muito branca. Ele baixinho, careca, com uns óculos pretos com um fundo de garrafa muito grande, sempre muito bem-disposto. Sentia-se que entre eles havia amor e muito respeito.
Em Maio era o mês da grande festa, o filho fazia anos, e todos os anos celebrava-se o aniversário com pompa e circunstância.
Tinha fotógrafo particular, passadeira vermelha, criados a servir com blazer branco e laço preto e na cozinha as empregadas preparavam tudo com o maior rigor.
Lembro-me muito bem da casa, uma entrada particular na Rua do Jasmineiro, no quintal à frente vários canteiros de rosas de todas as cores e feitios, à entrada um grande corredor terminava com a escada ao fundo para o segundo andar. À direita ficava a sala e sala de jantar, à esquerda 2 ou 3 quartos que a senhora habitualmente alugava a pessoas de muito respeito (professores ou inspectores das finanças), a seguir a cozinha e de seguida havia um grande salão onde eram feitas as festas de anos. Esse salão era transformado em discoteca e era aí que pela tarde e noite fora se divertiam os convidados.
Logo à entrada e depois de tirada a fotografia à família, passávamos à sala e íamos ver a mesa do bolo, o tema da festa, a decoração, às vezes o filho tocava piano para os convidados (julgo que quando era mais pequeno). Apareciam logo os criados com cup de fruta em tacinhas de vidro com pé alto e elegante, eu gostava daquele sabor das frutas com o sumo e o gás da água, acepipes, canapés vários, vitelinhos, empadinhas, rissóis e umas queijadas deliciosas que eram a receita especial da senhora.
Nestas saletas e no jardim, ficavam as pessoas mais velhas, os amigos do casal, família e outros conhecidos.
Lá ao fundo no salão decorria a dança, a festa com os mais jovens, onde eu “bicho do buraco”, morria de vergonha só em pensar entrar, rondava a casa do lado esquerdo do jardim e ponha-me à porta a espreitar, quando dava muito nas vistas, voltava para trás e entrava pela cozinha e ficava sentadinha num banco novamente a espreitar.
O que eu gostava mesmo era de ir pular e dançar como os outros, mas a timidez amputava-me as pernas e ali ficava com carinha de anjo ouvindo, e apenas ouvindo a música, as gargalhadas, as palmas, a folia e o divertimento que todos extravasavam sem preconceitos nenhuns.
Afinal eram todos jovens, todos da minha geração, todos novos, iguais a mim, entusiastas da vida e dos prazeres que dela retiramos.
Às vezes, e mesmo no meio de tanto trabalho e atenção que tinha de dar aos convidados, aparecia a minha madrinha, agarrava-me na mão e levava-me até ao centro do salão e dizia “então deixaram a Luisinha ali sozinha”, então, eu sentia o chão a fugir cada vez mais dos meus pés, a cara a fumegar, e pedia a todos os santinhos que me tirassem dali. Não sei quantas vezes na vida morri de vergonha, mas nestas festas, todos os anos morria de vergonha.
Hoje, agora, acho que já não morreria de vergonha, ou pelo menos deste tipo de vergonha. A vida foi-me trazendo um pouco mais de sal e os meus dias foram tendo mais cor e um sabor de rebeldia que pouco agradou ao meu pai.
 20.05.15


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