A
Mariazinha
Andava eu no liceu e de vez em quando ia à Rua Bela de São
Tiago a casa de uma amiga de infância da minha mãe, melhor dizendo a irmã dela,
é que era a amiga da minha mãe, mas essa, vivia em Setúbal. A Mariazinha tinha
vivido antes numa casa na Ponte Nova. A ideia que retive da primeira casa era
que tinha uma grande escadaria, a porta dava diretamente para a Rua 31 de
Janeiro, logo à entrada tínhamos de subir uma escada íngrime até chegar à sala,
havia mais um ou dois andares, com os quartos pequenos sendo um deles,
localizado numa espécie de torre, que tinha uma vista magnífica sobre a cidade
do Funchal.
Na casa, junto ao liceu, recordo as manhãs em que tinha
feriado e ia lá fazer-lhe uma visita, bebia um café e uma sandes, enquanto ela
na cozinha, preparava o almoço para o marido.
O marido era um militar, com uma boa patente, tinha estado
em África à frente de um pelotão, usava uma farda verde escura, homem sério, de
olhar duro, mas afectuoso para a mulher.
Às vezes quando tinha aulas à tarde ficava para almoçar,
conversávamos as duas, eu fazia-lhe companhia. Ela lia muito, gostava
especialmente de romances clássicos, como não trabalhava fora, era doméstica,
fazia também crochet e malhas.
Era uma mulher pequenina, bonita, com uma boa gargalhada,
muito disponível e de fácil trato. Gostava de se arranjar e estava sempre muito
aprumada.
Ela tinha uma mão certa para a cozinha. Cozinhava divinalmente
e geralmente pratos diferentes daqueles que eu comia em casa da minha mãe. Seguia-se
um ritual que só mais tarde é que vim a compreender. Comíamos numa copazinha,
uma salinha pequena e o café era invariavelmente tomado na sala acompanhado de
um cigarro na mão da Mariazinha.
Ele, o marido, era um homem tipicamente machista, nada fazia
em casa. Ela ponha a mesa, servia, levantava e levava o café na bandeja à sala.
Tinham dois filhos, qualquer um deles mais novo do que eu, o rapaz, era muito
baboso e a rapariga uma miúda enervante.
Passados uns anos o marido da Mariazinha foi transferido
para o Continente, ficou colocado em Setúbal e a família mudou-se para lá.
Mais tarde e já a estudar em Lisboa cheguei a ir visitá-los
e a passar alguns fins de semana com a família.
A rapariga continuava com um geniozinho especial, birrenta,
o rapaz, um bom rapazinho, tímido, muito metido no seu canto.
A Mariazinha gostava muito de cães, mas daquelas amostras ou
miniaturas tão irritantes quanto a filha. Nessa altura ainda não tinha perdido
a minha fobia aos cães, e fazia a família prender o cão dentro de uma marquise,
mas quando a pequena se zangava comigo espetava-me com o canino pela frente.
A Mariazinha era uma mulher à moda antiga, sem se anular
como pessoa, vivia para agradar o marido. Tinha um problema que lhe perseguiu
durante toda a vida e às vezes a deixava impotente, sofria de enxaquecas.
O marido foi o primeiro a falecer, o filho casou-se, a filha
também mas entretanto divorciou-se. Sei que ela sentiu e foi-se abaixo com a
morte do marido, eram o protótipo do casal que viviam um para o outro. Tinham o
propósito, hoje raro, de se agradarem mutuamente e notava-se a cumplicidade
entre eles.
Pelo que sei hoje a Mariazinha ainda é viva. Há uns anos atrás
esteve na Madeira com a filha e a neta, esta, tão ou mais impertinente que a
própria mãe, é caso para se comprovar o que diz o velho ditado “quem saí aos
seus não degenera”.
13.11.2014
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