A cantina do Lumiar,
Ficava num bairro de Lisboa, de
classe média alta, novo para a época (anos 80), no Lumiar, numa transversal à
Alameda das Linhas de Torres. Era uma cantina pequena, com um jardim grande à
frente do prédio, um supermercado ao lado, um café em frente e uma residência
universitária masculina também no prédio ao lado.
Fazíamos o trajecto a pé da nossa
casa à cantina, era só uma ou duas paragens de autocarro. Passávamos pelo
quartel do Lumiar, ouvíamos uns piropos dos magalas, a minha colega de quarto
ouvia mais do que eu, ela era mais alta, usava sapatos com salto e por isso
chamava mais a atenção. Eu ainda tinha aquele ar de “maria rapaz”, cabelo
curto, calças de ganga e mocassins.
Pagávamos por uma refeição 35
escudos, a cantina tinha um horário de abertura ao jantar das 18:30 às 20:00. Quando
eu não queria encontrar ninguém ou não estava virada para a conversa, bastava ir
jantar, mais próximo à hora do fecho. Já não havia fila, eram só os atrasados e
a comida também já escasseava.
Encontrávamos os amigos, os
colegas e os conhecidos, conforme a hora que decidíssemos ir jantar. Os
residentes da cantina eram sempre os do primeiro turno, os mais esfomeados, os
mais assíduos, os mais carentes, os tão necessitados como eu.
Com eles fiz algumas amizades,
conversas de circunstância, confidências de minutos de solidão e desconforto,
muitas vezes palavras sem importância ditas para não ficar calada ou para não
ser considerada menina “snob”. Falava com todos e claro, mais com os rapazes,
os da residência. Lembro-me de quase todos, de um muito alto, de dois lá das
Beiras, um do Fundão e um de Viseu, pequenos, com um ar muito tosco, humildes,
um de Leiria, inteligente, culto e interessante, estudante de Filosofia, os
outros na sua maioria eram todos estudantes de Direito. Havia também um grupo
de açorianos, de madeirenses e de alentejanos, viviam todos naquela residência
de 5 andares, em quartos partilhados. À excepção de um amigo de Filosofia, que
infelizmente já não posso conviver com ele, todos os outros foram se saindo bem
pela vida. Dois são Juízes, outros tantos exercem advocacia pelo país. Lembro-me
de um, com ar mais espertalhão do que os outros, deveras sedutor, mas também
baixote, no entanto com uma ambição inversamente proporcional à sua altura. Soube,
não por ele, claro, que já tinha concorrido duas vezes ao CEJ (Centro de
Estudos Judiciários) e tinha chumbado. É assim, a vida não sorri da mesma forma
para todos.
Enquanto esperava na fila, se
fosse jantar, à hora de ponta 19:30, assistia a muitas zangas de momento,
arrufos de namorados, marcação de encontros, esperas com desalento, tentativas
de conquista e conversas, sempre as conversas dos mesmos galanteadores, a
lançar isco a todas as caras novas que por lá apareciam.
Observávamos os novos estudante
ou as caras desconhecidas e pelo que traziam nos braços tentávamos identificar
o curso, se traziam batas brancas, vinham da Medicina, da Farmácia das Ciências
e da Química, se vinham de máquinas calculadoras, eram do Técnico, Engenharias
e Matemáticas, se traziam uma pasta na mão direita só podiam ser de Direito, se
vinham com canudos eram da Arquitectura e das Artes se nada traziam a não ser
os livros, eram os pelintras das Letras, Línguas, Literaturas e cursos afins
Nunca gostei da comida da
cantina, e mesmo assim, aquela era considerada a melhor, porque era pequena e a
confecção mais cuidada. Ainda hoje detesto comer num tabuleiro. Não gosto de ir
para os centros comerciais, comprar comida a peso e vir de tabuleiro nas mãos
para uma mesa.
Eu sempre fui de muito mau bico,
mas devo de confessar que foi em Lisboa que aprendi a comer de tudo. Serviam
canja numa tigela de plástico, sopa grossa, cheia de couve, cenoura, nabo e
feijão. Nem queiram imaginar, eu que em casa da minha mãe comia a sopa em puré,
tudo cremoso, tive de arranjar uns esquemas mentais e visuais para iludir
aquela tigela. Como tinha direito a um papo seco, partia-o aos bocados e
deitava na sopa, assim ia engolindo aquela miscelânea de verduras misturadas
com o pão. Como também o segundo prato nem sempre era do meu agrado, peixe de
rio, solha, salsichas com couve lombarda, ervilhas com ovos escalfados, pedia
um copo de leite e um iogurte para sobremesa, penicava qualquer coisa do prato,
e comia o restante.
A quem dava prazer ver comer eram
os rapazes da residência, mais tinham, mais comiam. Os de lá de cima, da terra,
tinham sempre no quarto uma ração de combate, enchidos, chouriços, broa,
ficavam a estudar depois do jantar e ainda ceavam. Eram muito marrões, sobretudo
os de Direito, nós ainda íamos para o café “Barão” e a seguir ainda vínhamos
para casa ver a novela.
Mas todos nós, gostávamos daquela
cantina, daqueles encontros diários, das trocas de olhares, dos sorrisos de
mesa para mesa, dos pontapés dados por debaixo da mesa, tudo sem querer, tudo
sem um propósito, daquela hesitação de quando se vem de tabuleiro na mão em
direcção àquela mesa, aquele espaço estratégico que arranjámos para nos
posicionarmos de frente por quem andávamos caidinhas na altura, tudo tão especial,
tudo tão romântico, despretensioso e genuíno.
De vez em quando a malta depois
de ter terminado o curso ainda voltava lá, mas já vinham diferentes, de fato,
gravata e pastinha de cabedal preta na mão. Ainda tentei após terminar o curso,
voltar à casa, ao espaço que dividi durante 5 anos, um dia senti que as caras
já não me eram familiares. É preciso fazer um corte e libertar as amarras.
Não esqueço porém, como ali e por
aquelas redondezas, muito cresci, muito aprendi, alguma coisa sofri também,
fruto da minha ingenuidade e da candura própria de quem tem 18 anos e se vê
numa grande cidade, sozinha e por conta própria.
Não voltei a ser assim com era.
Não voltei a ser assim tão feliz. Há já algum tempo que deixei de ser tão
autêntica. Tenho saudades de mim.
28.10.14
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