A casa
da avó,
A avó vivia numa casa de uma
família inglesa. A bem dizer a avó era governanta nessa casa. O avô era o cozinheiro,
mas depois dele falecer, ela passou a substitui-lo e a menina Carolina ficou no
lugar da avó.
A casa ficava situada na
Travessa do Rego, nº 9, era uma quinta, com um grande jardim, com palmeiras e
árvores de fruto, também tinha no fundo do jardim uma casinha de prazeres, um
lago com patos e uma capoeira com galos e galinhas. À frente da casa ficava a
Escola Industrial do Funchal, atrás era a casa de bordados, ao lado esquerdo o
Hotel do Carmo e no lado direito a Serragem da Madeira.
Uma das sobrinhas da senhora
inglesa tinha menos um ano do que eu, era bonita, loura, usava tranças e foi
uma das minhas companhias de infância. Subir às árvores, correr e andar de
bicicleta entre os canteiros, eram as nossas brincadeiras.
Eu tinha um fascínio por aquela
casa. Toda ela era muito clássica. Para chegar à porta principal havia uma
escadaria, larga o suficiente para transmitir a sua imponência. No primeiro
andar situavam-se as salas e no segundo andar os quartos de dormir, ainda havia
um rés-do-chão onde se localizavam os quartos dos empregados. Esta última zona
não me agradava nada visitar, era sombria, escura, triste, quase não havia luz,
as janelas eram pequenas, com aberturas para o exterior e com um gradeamento de
ferro que dava para um beco. O beco separava a casa do Hotel do Carmo.
Sempre que tentava espiolhar
para as saletas ou para a sala de jantar os meus olhos prendiam-se nas
poltronas forradas a veludo vermelho e dourado, nas pratas distribuídas pelo sideboard e outros móveis ao bom estilo
inglês, nos candelabros, no relógio de caixa, um grandfthader, tudo aquilo para mim era um outro mundo. Parecia um
quadro extraído dos filmes ingleses que víamos na televisão, tipo Madame
Bovary. A escadaria que ligava aos quartos de dormir, toda ela forrada por uma
passadeira de veludo vermelho, só de olhar ficava intimidada e não ousava
passar do primeiro degrau.
De vez em quando assustava-me com
o toque das sinetas, eram as senhoras a anunciar que precisavam de qualquer
coisa, as “criadas” que estavam na cozinha avançavam de imediato para satisfazer
os pedidos.
A cozinha era o espaço onde a
minha avó reinava, era grande, tinha um enorme fogão a lenha, com gavetas, e
portas, tinha pendurado no teto uma espécie de gaiola, forrada a verga muito
fininha, lá havia sempre um pratinho tapado com restos de comida, sempre tive
curiosidade em descobrir se aqueles alimentos eram para as empregadas, mas
nunca vim a saber ao certo. Mesmo no meio da cozinha havia uma mesa de madeira
grande com duas gavetas. Era dessas gavetas que milagrosamente saíam bolos,
scones e outros doces feitos pela mão da minha avó. É engraçado como desde muito
cedo eu descobri o vício dela em esconder comida. Anos mais tarde, já a viver
em casa dos meus pais, ocultava comida nos bolsos dos vestidos, dos aventais e
pelas gavetas dos armários.
Sempre sentada à volta da mesa a
preparar legumes, a mexer massa de bolos, ou a fazer sandes, estava a menina
Carolina. Destes tempos idos recordo-me do chá preto com leite e dos scones que
a minha avó me presenteava quando ia fazer-lhe uma visita.
A Miss, a senhora inglesa, era
professora de inglês na academia e dava explicações em casa. Todas as minhas
irmãs, à excepção do meu irmão mais novo e de mim, foram alunas dela. Algumas
vezes aparecia pelo jardim para passear e descontrair as pernas enquanto
esperava pelos alunos. Era muito branca, tinha uma camada rosa de pó de arroz
espalhada pela cara e cheirava a colónia de bebé. Era solteira, nunca tinha
casado.
Recordo-me também das meninas
inglesas mandarem roupa para a minha mãe, a qual habilidosamente desmanchava e
fazia vestidos dignos de capa de revista.
Depois de a minha avó ter
morrido, a Miss ainda por lá ficou uma serie de anos sempre a dar explicações.
Adoeceu, ficou só e desamparada, entretanto descobri que foi internada num lar
em Machico e morreu anos mais tarde. A única visita que tinha esporadicamente
da família era um sobrinho. O sobrinho era o irmão da inglesinha que brincava
comigo, muito mais velho do que ela, era um bonito homem, tinha uns olhos
verdes muito lindos.
Fiquei sempre sem saber o que
foi feito daquele espólio todo que havia na casa, se venderam ou se
distribuíram pelos herdeiros. Hoje a casa já não existe, foi demolida e
construído um outro edifício. Sei apenas que, daquela família a única pessoa
residente na Madeira é o sobrinho, passo por ele algumas vezes de carro, eu
reconheço-o mas ele não me conhece.
A irmã, a inglesinha, vive em
Lisboa, há uns anos esteve aqui na ilha e telefonou para casa dos meus pais,
queria encontrar-se comigo. Estivemos juntas, qualquer uma de nos já tinha dois
filhos.
Achei curioso e fiquei feliz
quando me apercebi que o marido dela chamava-se António e cada um dos seus
filhos tinham o nome da minha avó, Maria e do meu avô, António.
02.10.2014
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