quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A casa da avó,

A casa da avó,
A avó vivia numa casa de uma família inglesa. A bem dizer a avó era governanta nessa casa. O avô era o cozinheiro, mas depois dele falecer, ela passou a substitui-lo e a menina Carolina ficou no lugar da avó.
A casa ficava situada na Travessa do Rego, nº 9, era uma quinta, com um grande jardim, com palmeiras e árvores de fruto, também tinha no fundo do jardim uma casinha de prazeres, um lago com patos e uma capoeira com galos e galinhas. À frente da casa ficava a Escola Industrial do Funchal, atrás era a casa de bordados, ao lado esquerdo o Hotel do Carmo e no lado direito a Serragem da Madeira.
Uma das sobrinhas da senhora inglesa tinha menos um ano do que eu, era bonita, loura, usava tranças e foi uma das minhas companhias de infância. Subir às árvores, correr e andar de bicicleta entre os canteiros, eram as nossas brincadeiras.
Eu tinha um fascínio por aquela casa. Toda ela era muito clássica. Para chegar à porta principal havia uma escadaria, larga o suficiente para transmitir a sua imponência. No primeiro andar situavam-se as salas e no segundo andar os quartos de dormir, ainda havia um rés-do-chão onde se localizavam os quartos dos empregados. Esta última zona não me agradava nada visitar, era sombria, escura, triste, quase não havia luz, as janelas eram pequenas, com aberturas para o exterior e com um gradeamento de ferro que dava para um beco. O beco separava a casa do Hotel do Carmo.
Sempre que tentava espiolhar para as saletas ou para a sala de jantar os meus olhos prendiam-se nas poltronas forradas a veludo vermelho e dourado, nas pratas distribuídas pelo sideboard e outros móveis ao bom estilo inglês, nos candelabros, no relógio de caixa, um grandfthader, tudo aquilo para mim era um outro mundo. Parecia um quadro extraído dos filmes ingleses que víamos na televisão, tipo Madame Bovary. A escadaria que ligava aos quartos de dormir, toda ela forrada por uma passadeira de veludo vermelho, só de olhar ficava intimidada e não ousava passar do primeiro degrau.
De vez em quando assustava-me com o toque das sinetas, eram as senhoras a anunciar que precisavam de qualquer coisa, as “criadas” que estavam na cozinha avançavam de imediato para satisfazer os pedidos.
A cozinha era o espaço onde a minha avó reinava, era grande, tinha um enorme fogão a lenha, com gavetas, e portas, tinha pendurado no teto uma espécie de gaiola, forrada a verga muito fininha, lá havia sempre um pratinho tapado com restos de comida, sempre tive curiosidade em descobrir se aqueles alimentos eram para as empregadas, mas nunca vim a saber ao certo. Mesmo no meio da cozinha havia uma mesa de madeira grande com duas gavetas. Era dessas gavetas que milagrosamente saíam bolos, scones e outros doces feitos pela mão da minha avó. É engraçado como desde muito cedo eu descobri o vício dela em esconder comida. Anos mais tarde, já a viver em casa dos meus pais, ocultava comida nos bolsos dos vestidos, dos aventais e pelas gavetas dos armários.
Sempre sentada à volta da mesa a preparar legumes, a mexer massa de bolos, ou a fazer sandes, estava a menina Carolina. Destes tempos idos recordo-me do chá preto com leite e dos scones que a minha avó me presenteava quando ia fazer-lhe uma visita.
A Miss, a senhora inglesa, era professora de inglês na academia e dava explicações em casa. Todas as minhas irmãs, à excepção do meu irmão mais novo e de mim, foram alunas dela. Algumas vezes aparecia pelo jardim para passear e descontrair as pernas enquanto esperava pelos alunos. Era muito branca, tinha uma camada rosa de pó de arroz espalhada pela cara e cheirava a colónia de bebé. Era solteira, nunca tinha casado.
Recordo-me também das meninas inglesas mandarem roupa para a minha mãe, a qual habilidosamente desmanchava e fazia vestidos dignos de capa de revista.
Depois de a minha avó ter morrido, a Miss ainda por lá ficou uma serie de anos sempre a dar explicações. Adoeceu, ficou só e desamparada, entretanto descobri que foi internada num lar em Machico e morreu anos mais tarde. A única visita que tinha esporadicamente da família era um sobrinho. O sobrinho era o irmão da inglesinha que brincava comigo, muito mais velho do que ela, era um bonito homem, tinha uns olhos verdes muito lindos.

Fiquei sempre sem saber o que foi feito daquele espólio todo que havia na casa, se venderam ou se distribuíram pelos herdeiros. Hoje a casa já não existe, foi demolida e construído um outro edifício. Sei apenas que, daquela família a única pessoa residente na Madeira é o sobrinho, passo por ele algumas vezes de carro, eu reconheço-o mas ele não me conhece.
A irmã, a inglesinha, vive em Lisboa, há uns anos esteve aqui na ilha e telefonou para casa dos meus pais, queria encontrar-se comigo. Estivemos juntas, qualquer uma de nos já tinha dois filhos.
Achei curioso e fiquei feliz quando me apercebi que o marido dela chamava-se António e cada um dos seus filhos tinham o nome da minha avó, Maria e do meu avô, António.
02.10.2014








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