Na rua e em casa.
Todos os anos antes de iniciar o
período escolar era preciso comprar os sapatos para o colégio. Tinham de ser
azuis escuros, da mesma cor que a farda. Eram sandálias inglesas e comprados
invariavelmente na Sapataria Modelo. O meu pai não era adepto de saldos para
sapatos, comprava-se quando era necessário. Eu vinha ter ao trabalho dele, à
Manteigaria Zarco, ou vinha acompanhada de uma das minhas irmãs, escolhia os
sapatos, ele depois passava por lá e pagava. Todas as compras eram efectuadas na
artéria da Rua Dr. Fernão de Ornelas, à excepção da Casa Mendonça, onde o meu
pai comprava os casacos de fato e os coletes de malha. Lembro-me perfeitamente
de na altura, estudante de liceu, surripiar os coletes de malha Wollmark,
azuis, bege e verdes. Aqui para nós, sei que faziam um sucesso enorme.
As compras lá para casa vinham
também da Manteigaria Zarco, depois de a minha mãe fazer uma lista e de uma
triagem especial feita pelo meu pai. Na mesma rua, ficava o Carlos Fotografo, o
Dr. Adolfo Brazão, a Farmácia Morna, a Casa Tininha, o Sino a Pretinha do Café,
e o mercado. Os livros e restante material escolar era um pouco mais longe, lá
para os lados do Largo do Colégio, na Papelaria do Colégio com o Sr. Correia,
nosso vizinho de rua e já falecido.
Não havia quem não conhecesse o
meu pai naquela rua, ele andava de loja em loja, só de camisa e gravata, vestia
o casaco quando saia às 13 horas para vir a casa almoçar. Nunca o meu pai foi
trabalhar sem gravata, o casaco e um molhe de chaves na algibeira. Recordo-me
tão bem do barulho que faziam aquele molhe de chaves sempre que ele entrava em
casa.
O meu pai nunca conduziu, nunca
teve um carro, mas os amigos e vizinhos das lojas da Rua Dr. Fernão de Ornelas,
todos os dias davam-lhe boleia para casa, raramente vinha de autocarro, à
excepção dos domingos quando ia à missa. Aos domingos íamos sempre à última
missa, quase sempre à Igreja do Colégio e chegávamos sempre atrasados. A minha
mãe para se despachar ia às vezes à Igreja de Santa Luzia. Quando a missa terminava
havia sempre a mesma discussão, se íamos ao Café Apolo ou vínhamos de táxi para
casa. A minha mãe era uma mulher de poucos luxos, mas gostava daquele bocadinho
dentro da Apolo, onde ela tomava uma chinesa e um bolo de arroz e ficava a
olhar para as roupas das senhoras que por lá passavam na expectativa de tirar o
modelo para pedir à D Cecília um vestido igual. A minha mãe tinha o condão de
que, tudo o que via nos outros ia-lhe ficar bem, era o modelo, a cor, o tecido,
e depois quando ia à loja para comprar nunca encontrava nada igual ao que tinha
visto. Não era fácil satisfazê-la. Até as filhas dos outros eram sempre
melhores que as dela. Era uma batalha perdida para nós, sempre foi assim
durante toda a vida.
Bonita, alta, elegante, mas
muito perdida no espaço onde vivia, não gostava da cidade, preferia ter antes
ficado no local onde nasceu, em Santa Cruz, tal como viviam as irmãs e o irmão.
Mulher demasiado selectiva, discreta, e cujos sonhos ficaram sempre aquém da
vida que teve. Não gostava de praia, nem de festas, mas adorava cantar e
cantava tão bem o fado. Sempre os fados da Amália, só cantava quando estava
descontraída e reunida com a família em Santa Cruz, nunca perto do meu pai. Ele
achava que aquilo não era coisa para uma senhora, casada mulher de respeito e
mãe de filhos. Cantar para o meu pai, estava associado à noite, à galdeirice e a
estilos de uma vida boémia.
A minha mãe raramente saía de
casa, descia ao Funchal para vir ao médico ou à caixa com algum filho, para vir
ao Salão Morena na Rua do Aljube, para ir à casa das Linhas, comprar fechos,
botões, carros de linhas, entretela e forro para as roupas que cuidadosamente
fazia para nós, para ir à casa da Vizinha Graça junto à Ponte de Pau, para ir à
costureira, esta ultima vivia um pouco mais longe, por isso às vezes era ela
que vinha a nossa casa.
Era tão
selectiva que até os cozinhados eram escolhidos a dedo, não variava muito os
pratos mas o que fazia era perfeito. Não gostava de marisco e não era qualquer
peixe que ela autoriza entrar na sua cozinha. Lembro-me dos melhores filetes de
espada que comi até hoje, espalmados, lourinhos e estaladiços, de uma carne
assada que se desfazia na boca, de um arroz acastanhado, de umas bolinhas de
carne, de um pudim de pão com uma cobertura de claras em castelo (suspiros), de
um pudim de bolo com custard, de umas fatiotas fritas no molho da carne de
vinha de alhos. Ela sabia no que era perfeita e jogava com isso, muitas vezes o
meu pai queria ter convidados em casa, a contragosto dela, e era o cabo dos
trabalhos para a convencer a receber uns comensais para o almoço. Dava muito
trabalho, ela atrasava-se sempre, e ele discutia, porque as pessoas estavam
esfomeadas e era feio estar muito tempo à espera, mas assim que as travessas
chegavam à mesa, ninguém mais ouvia a voz do meu pai, o que se ouvia eram só
elogios e todos para ela.
E eram assim os
meus pais tão diferentes entre si, ele um homem de rua, extrovertido, folião,
sempre um homem com muito apetite, ela uma mulher da casa, recatada, com um
humor muito cáustico, que só comia não porque tinha fome, mas porque era
preciso comer qualquer coisa. Nas diferenças tinham qualquer coisa em comum,
uma tenacidade e capacidade de lutar pela vida, pelo bem-estar dos filhos e por
um futuro melhor.
Não é por acaso
que ele com 92 anos e ela com 87 vivem ainda os dois juntos, ainda na sua casa
e ainda com a companhia diária dos filhos e com almoços em família aos fins de
semana, sempre, sempre na casa deles, na casa onde educaram os filhos e hoje recebem
e acarinham netos e bisnetos.
15.10.2014
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