De barco.
Não tenho ideia de quanto
tempo levava o barco até à Ribeira Brava. Sei que, a viagem se fazia no Verão,
enjoava qualquer coisa e tinha uma certa dificuldade a entrar e sair quando a
embarcação acostava no caís e fazíamos o transbordo para terra. O barco tinha
um toldo, para cobrir do sol ou da chuva que se fizesse sentir.
Ainda mareada íamos de
autocarro até à Ribeira, e descíamos a pé até à Madalena do Mar. O autocarro
era de bancos corridos, revestidos a napa castanha avermelhada e os vidros
puxavam-se de baixo para cima. Havia o condutor e um “bilheteiro”, que
circulava pelo autocarro sempre que entrava uma pessoa ou saía outra. Quase sempre
dirigia-se à parte lateral do autocarro, ao porta bagagens, para ajudar a tirar
uma sacola e uma data de compras fruto da viagem feita até à cidade. Tinha uma
bolsa de couro castanho-escuro a tiracolo e na mão uma dose generosa de
bilhetes de todos as cores que mais parecia um arco-íris. Fascinava-me tanta
quantidade de cores e aqueles pedacinhos de papel muito fininhos. Dentro da
sacola, sempre com um peso considerável, guardavam-se as notas de escudo e as
moedas pretas.
A casa ficava situada numa zona nobre da vila, no Sítio do Passo
na Madalena do Mar. Ainda hoje lá está, directamente virada para o mar, com uma
porta verde de madeira, e por cima, orgulhosamente desenhado no cimento o seu ano
de construção. Nessa casa viviam os progenitores de um casal amigo dos meus
pais.
Eram pessoas com algum reconhecimento na freguesia, os filhos,
tinham sido bem encaminhados na vida, havia um padre, uma professora e uma
advogada. Da família da mulher do casal amigo dos meus pais, existiam freiras,
uma estava em Lisboa e outra aqui no Convento de Santa Clara, havia uma irmã
que vivia na Ribeira e uma outra que vivia na Lombada da Ponto de Sol e que
curiosamente só tinha filhas, pelo menos umas três.
Mas não era nesta casa principal que nós ficávamos. Subíamos por
uma entrada particular mesmo ao lado, virávamos à direita, continuávamos sempre
em frente e curvávamos à esquerda. Ali ficava uma casa humilde, bem mais
pequena do que a outra, rodeada de bananeiras, poios e regos. Gostava muito do
terraço, com vista sobre o mar. Ali devorei o mais belo por do sol, sentava-me
no chão de cimento e ficava a ver o sol a pôr-se, o céu a ficar cada vez mais
vermelho, descaindo para o laranja, baixando suavemente na linha do horizonte e
aquela matiz vermelho alaranjado ia subtilmente se misturando no azul do mar e
no escuro do céu e de repente ficava tão longe, tão distante e os meus olhos
deixavam de o ver e ele perdia-se para lá do horizonte. Só o tornaria a ver no
dia seguinte. Era um momento mágico. Eu absorvia para não mais esquecer aqueles
silêncios quentes. E pensava, para onde iria entregar luz e cor e a quem iria
aquecer.
Às vezes na linha do horizonte apontava um navio, eu queria saber para
onde seguia aquele barco, quem levava, o que faziam as pessoas que iam lá
dentro, tantas perguntas, tantos quês, que ninguém me respondia, até porque eu
também não me atrevia a perguntar.
Por ali ficava, nunca mais do que uma semana, ia sempre com uma
irmã do meio. O homem da casa tinha emigrado para França e havia deixado em
Portugal a mulher e 4 filhos, todos rapazes.
Apesar de serem rapazes não me intimidavam, eu sempre estive
habituada a brincar com os rapazes, nasci, no meio de dois, tenho um irmão mais
velho e um mais novo. No Funchal, a vizinhança era composta por rapazes, por
isso as brincadeiras eram muito mais masculinas do que femininas. As
bicicletas, a bola, os carrinhos de verga, as pistolas eram os meus brinquedos.
Não me recordo de ter tido muitas bonecas, lembro-me apenas de uma mulher da
Nazaré, oferecida pela minha madrinha, era uma boneca grande e com muita roupa,
sete saias, e alguns colares a imitar ouro, aquilo fazia-me uma confusão. Ainda
esteve em cima da minha cama uma serie de anos. Hoje em dia brinquedos, bonecas
ou quaisquer resquícios de brincadeiras de infância não restam nenhuns.
Os rapazes que viviam na Madalena do Mar eram durante essa semana
os meus únicos companheiros de brincadeiras, das idas à praia, dos passeios até
o caís passando pelo bairro dos pescadores, das visitas à igreja e ao salão
paroquial.
Atravessa a rua só de fato banho e toalha em cima do ombro, ora
descalça ora de chinelas de meter o dedo amarelas, tipo havaianas.
O mais velho era muito apaparicado pela mãe e por uma tia, eu
pessoalmente dava-me muito bem com um da minha idade, os outros dois eram mais
pequenos, muito chorões e andavam sempre debaixo das saias da mãe. Foram todos
para França, vivem lá há muitos anos e há muitos anos que também não os vejo.
Mais tarde, já todos em França soube que os pais se divorciaram,
na verdade nunca se deram bem, assisti a muitas discussões, o marido era
ciumento e autoritário, a mulher por seu lado não gozava de um bom feitio, como
se costuma dizer, tinha pelo na venta.
Na Madalena também havia família da parte do meu pai, pelo menos duas
primas, e soube há bem pouco tempo que a minha bisavó, uma senhora muito alta e
de olhos azuis, filha única de uma família da Calheta, porque namorou e decidiu
casar-se com um rapaz que não era da mesma classe social que a dela foi
deserdada e acabou por ir viver para a Madalena.
Não sei se é pela experiência vivida mas hoje em dia ainda sinto
um prazer muito grande em passar pela marginal da Madalena, olhar a casa, que
entretanto foi vendida, mas encontra-se igual à que era, sentir o calor do sol
de um fim de tarde e imaginar-me sentada naquele chão de cimento de um pequeno
terraço à espera de mais um terminar de dia.
Curiosamente, há uns dias atrás e depois de uma caminhada, por
momentos regressei à minha infância e observei um por do sol semelhante àquele
em que assistia na Madalena do Mar, quando era uma miúda entre os 8 e os 9
anos.
Foi no Calhau das Achadas da Cruz, que por breves instantes vivi
alguns momentos de uma boa nostalgia contemplando o fim de um dia.
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