sexta-feira, 9 de junho de 2017

De barco

De barco.
Não tenho ideia de quanto tempo levava o barco até à Ribeira Brava. Sei que, a viagem se fazia no Verão, enjoava qualquer coisa e tinha uma certa dificuldade a entrar e sair quando a embarcação acostava no caís e fazíamos o transbordo para terra. O barco tinha um toldo, para cobrir do sol ou da chuva que se fizesse sentir.
Ainda mareada íamos de autocarro até à Ribeira, e descíamos a pé até à Madalena do Mar. O autocarro era de bancos corridos, revestidos a napa castanha avermelhada e os vidros puxavam-se de baixo para cima. Havia o condutor e um “bilheteiro”, que circulava pelo autocarro sempre que entrava uma pessoa ou saía outra. Quase sempre dirigia-se à parte lateral do autocarro, ao porta bagagens, para ajudar a tirar uma sacola e uma data de compras fruto da viagem feita até à cidade. Tinha uma bolsa de couro castanho-escuro a tiracolo e na mão uma dose generosa de bilhetes de todos as cores que mais parecia um arco-íris. Fascinava-me tanta quantidade de cores e aqueles pedacinhos de papel muito fininhos. Dentro da sacola, sempre com um peso considerável, guardavam-se as notas de escudo e as moedas pretas.

A casa ficava situada numa zona nobre da vila, no Sítio do Passo na Madalena do Mar. Ainda hoje lá está, directamente virada para o mar, com uma porta verde de madeira, e por cima, orgulhosamente desenhado no cimento o seu ano de construção. Nessa casa viviam os progenitores de um casal amigo dos meus pais.
Eram pessoas com algum reconhecimento na freguesia, os filhos, tinham sido bem encaminhados na vida, havia um padre, uma professora e uma advogada. Da família da mulher do casal amigo dos meus pais, existiam freiras, uma estava em Lisboa e outra aqui no Convento de Santa Clara, havia uma irmã que vivia na Ribeira e uma outra que vivia na Lombada da Ponto de Sol e que curiosamente só tinha filhas, pelo menos umas três.
Mas não era nesta casa principal que nós ficávamos. Subíamos por uma entrada particular mesmo ao lado, virávamos à direita, continuávamos sempre em frente e curvávamos à esquerda. Ali ficava uma casa humilde, bem mais pequena do que a outra, rodeada de bananeiras, poios e regos. Gostava muito do terraço, com vista sobre o mar. Ali devorei o mais belo por do sol, sentava-me no chão de cimento e ficava a ver o sol a pôr-se, o céu a ficar cada vez mais vermelho, descaindo para o laranja, baixando suavemente na linha do horizonte e aquela matiz vermelho alaranjado ia subtilmente se misturando no azul do mar e no escuro do céu e de repente ficava tão longe, tão distante e os meus olhos deixavam de o ver e ele perdia-se para lá do horizonte. Só o tornaria a ver no dia seguinte. Era um momento mágico. Eu absorvia para não mais esquecer aqueles silêncios quentes. E pensava, para onde iria entregar luz e cor e a quem iria aquecer.
Às vezes na linha do horizonte apontava um navio, eu queria saber para onde seguia aquele barco, quem levava, o que faziam as pessoas que iam lá dentro, tantas perguntas, tantos quês, que ninguém me respondia, até porque eu também não me atrevia a perguntar.
Por ali ficava, nunca mais do que uma semana, ia sempre com uma irmã do meio. O homem da casa tinha emigrado para França e havia deixado em Portugal a mulher e 4 filhos, todos rapazes.
Apesar de serem rapazes não me intimidavam, eu sempre estive habituada a brincar com os rapazes, nasci, no meio de dois, tenho um irmão mais velho e um mais novo. No Funchal, a vizinhança era composta por rapazes, por isso as brincadeiras eram muito mais masculinas do que femininas. As bicicletas, a bola, os carrinhos de verga, as pistolas eram os meus brinquedos. Não me recordo de ter tido muitas bonecas, lembro-me apenas de uma mulher da Nazaré, oferecida pela minha madrinha, era uma boneca grande e com muita roupa, sete saias, e alguns colares a imitar ouro, aquilo fazia-me uma confusão. Ainda esteve em cima da minha cama uma serie de anos. Hoje em dia brinquedos, bonecas ou quaisquer resquícios de brincadeiras de infância não restam nenhuns.
Os rapazes que viviam na Madalena do Mar eram durante essa semana os meus únicos companheiros de brincadeiras, das idas à praia, dos passeios até o caís passando pelo bairro dos pescadores, das visitas à igreja e ao salão paroquial.
Atravessa a rua só de fato banho e toalha em cima do ombro, ora descalça ora de chinelas de meter o dedo amarelas, tipo havaianas.
O mais velho era muito apaparicado pela mãe e por uma tia, eu pessoalmente dava-me muito bem com um da minha idade, os outros dois eram mais pequenos, muito chorões e andavam sempre debaixo das saias da mãe. Foram todos para França, vivem lá há muitos anos e há muitos anos que também não os vejo.
Mais tarde, já todos em França soube que os pais se divorciaram, na verdade nunca se deram bem, assisti a muitas discussões, o marido era ciumento e autoritário, a mulher por seu lado não gozava de um bom feitio, como se costuma dizer, tinha pelo na venta.
Na Madalena também havia família da parte do meu pai, pelo menos duas primas, e soube há bem pouco tempo que a minha bisavó, uma senhora muito alta e de olhos azuis, filha única de uma família da Calheta, porque namorou e decidiu casar-se com um rapaz que não era da mesma classe social que a dela foi deserdada e acabou por ir viver para a Madalena.
Não sei se é pela experiência vivida mas hoje em dia ainda sinto um prazer muito grande em passar pela marginal da Madalena, olhar a casa, que entretanto foi vendida, mas encontra-se igual à que era, sentir o calor do sol de um fim de tarde e imaginar-me sentada naquele chão de cimento de um pequeno terraço à espera de mais um terminar de dia.
Curiosamente, há uns dias atrás e depois de uma caminhada, por momentos regressei à minha infância e observei um por do sol semelhante àquele em que assistia na Madalena do Mar, quando era uma miúda entre os 8 e os 9 anos.
Foi no Calhau das Achadas da Cruz, que por breves instantes vivi alguns momentos de uma boa nostalgia contemplando o fim de um dia.

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