No Janeiro,
Era um terreno único e eu andava
de casa em casa, sem ter de passar pela estrada.
A vida fazia-se por dentro, entre
os terrenos, entre os poios, as veredas, saltando muros e subindo tapadas.
Um dia, não sei porquê, mas com
muita indignação da minha parte, deixamos de ter acesso, as modernices, a
construção de uma nova casa para uma prima, cortou a ligação interna para
caminho da casa das tias.
As casas principais eram três,
ainda havia mais uma de um primo, mas não tão perto e teríamos de ir forçosamente
pela estrada.
O almoço era escolhido como se um
restaurante fosse todos diferentes e com ementas variadas. Eu ia passando por
cada uma e perguntava “tia o que é o almoço?”.
Ficava e saboreava a refeição
onde o melhor menu me aconchegasse o estômago.
À noite e para dormir gostava de
parar na última casa. Aproximava-me do terreiro e exclamava “uhuhuh…Tia”,
ouvia-a ao longe “vem Luisinha estamos na cozinha”.
Era uma casa pequena, de sobrado
e com janelas de tapassóis verdes a abrir para um terreiro comprido.
À frente um muro de cimento, com
tapetes e mantas de retalho. Ali ficávamos sentados a conversar dia e noite
fora. Eu sentava-me sempre encavalitada em cima do muro.
Havia um terraço, avistávamos o
mar, observávamos os aviões a aterrar, ouvíamos o porco a roncar, uma vaca no
palheiro, havia o cheiro a terra, a vinho, a uvas e a fruta da época.
Havia sempre um cão, geralmente
preso de dia e solto à noite e muitos gatos, muitos gatos dentro de casa,
felizmente não subiam para os quartos.
Havia uma fazenda grande, com
árvores, anoneiras, nespereiras, peras abacates e à frente da cozinha um jardim
com muitas flores.
Lembro-me do tio José, sentado
numa banca à saída da porta da cozinha de barreta na cabeça e a fumar e homens
a bater à porta. Entravam, bebiam um copo e faziam-lhe companhia. Às vezes
também vinham as mulheres, conversavam com a tia e também bebiam.
Outras vezes os mesmos homens e
mulheres vinham para dar a dias, para trabalhar no terreno, para mondar e regar
as bananeiras.
Eu gostava daquela casa à noite,
ninguém se deitava cedo, à excepção do tio, todos iam para a cama tarde.
Lembro-me de a casa não ter luz
eléctrica e mais tarde lembro-me das faltas de energia que nos surpreendia a
todos, sobretudo nos dias invernosos e chuvosos.
E era disso que eu gostava,
menina de cidade, adorava os ambientes do campo.
Gostava daquela cozinha, do lar,
do forno a lenha, das panelas de ferro e de alumínio arreadas tão delicadamente
que nos serviam de espelho, dos móveis pintados de azul anil, da mesa grande e
comprida e das torradas feitas nas brasa do lar e sorvidas com uma grande
chávena de café com leite. O café era de saco e o leite era de casa, da vaca
que estava ali ao lado.
O ir para a cama era um dos
episódios mais engraçados, subíamos as escadas, levantávamos o alçapão,
entravamos directamente no quarto dos tios e passávamos para o nosso, sem
corredora, era porta com porta.
Subíamos sempre de candeeiro a
petróleo na mão, que nos alumiava ate a hora de já estarmos dentro dos lençóis.
Na minha casa no Funchal, os
quartos não eram assim, havia uma corredora que os delimitava uns dos outros.
Eu gostava daquela intimidade, de
ouvir a minha tia a ressonar e do meu tio a rezingar. Gostava daquela partilha
de espaços pequenos.
O soalho rangia, as portas chiavam,
os mínimos ruídos eram barulhos intensos no silêncio da noite.
O quarto era pequeno, mas
acolhedor, tinha duas camas cada uma encostada à parede, uma escrivaninha muito
alta, um guarda fatos daqueles que tem ao centro um grande espelho e mais um móvel
pequeno.
A casa tinha uma casa de banho na
rua, à noite quando havia vontade de fazer chichi, utilizávamos um penico que
ficava debaixo da cama, a casa do Funchal não tinha nada disto.
Lembro-me ainda do luar, o luar
que entrava pelas frestas dos tapassóis e fazia com que no quarto fosse quase sempre
dia.
Conversávamos e riamos, riamos
muito, até que o meu tio nos mandava calar.
De manhã, era a última a levantar.me,
estava de férias, não havia escola, nem horários para cumprir.
Recordo com saudade o aroma do
café acabado de fazer e do cheiro a ovos fritos, quando descia, dizia logo “tia
eu quero um ovinho molinho e torradinhas com manteiga”.
A tia era uma mulher muito
pequena com as pernas ligeiramente arqueadas, tinha um cabelo muito comprido
que usava todo enrolado fazendo um carapito no alto da cabeça ou entrelaçado
terminando da mesma forma.
A tia ria muito, estava sempre
bem disposta, nunca gritava, não brigava, era uma mulher da terra, do campo, de
muito trabalho.
Mesmo quando a tia ficou doente,
e muito doente, a tia ria sempre, com gargalhadas, mas com tanta vontade que às
vezes lacrimejava de tanto rir.
26.09.14
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