sexta-feira, 26 de setembro de 2014

No Janeiro,

No Janeiro,
Era um terreno único e eu andava de casa em casa, sem ter de passar pela estrada.
A vida fazia-se por dentro, entre os terrenos, entre os poios, as veredas, saltando muros e subindo tapadas.
Um dia, não sei porquê, mas com muita indignação da minha parte, deixamos de ter acesso, as modernices, a construção de uma nova casa para uma prima, cortou a ligação interna para caminho da casa das tias.
As casas principais eram três, ainda havia mais uma de um primo, mas não tão perto e teríamos de ir forçosamente pela estrada.
O almoço era escolhido como se um restaurante fosse todos diferentes e com ementas variadas. Eu ia passando por cada uma e perguntava “tia o que é o almoço?”.
Ficava e saboreava a refeição onde o melhor menu me aconchegasse o estômago.
À noite e para dormir gostava de parar na última casa. Aproximava-me do terreiro e exclamava “uhuhuh…Tia”, ouvia-a ao longe “vem Luisinha estamos na cozinha”.
Era uma casa pequena, de sobrado e com janelas de tapassóis verdes a abrir para um terreiro comprido.
À frente um muro de cimento, com tapetes e mantas de retalho. Ali ficávamos sentados a conversar dia e noite fora. Eu sentava-me sempre encavalitada em cima do muro.
Havia um terraço, avistávamos o mar, observávamos os aviões a aterrar, ouvíamos o porco a roncar, uma vaca no palheiro, havia o cheiro a terra, a vinho, a uvas e a fruta da época.
Havia sempre um cão, geralmente preso de dia e solto à noite e muitos gatos, muitos gatos dentro de casa, felizmente não subiam para os quartos.
Havia uma fazenda grande, com árvores, anoneiras, nespereiras, peras abacates e à frente da cozinha um jardim com muitas flores.
Lembro-me do tio José, sentado numa banca à saída da porta da cozinha de barreta na cabeça e a fumar e homens a bater à porta. Entravam, bebiam um copo e faziam-lhe companhia. Às vezes também vinham as mulheres, conversavam com a tia e também bebiam.
Outras vezes os mesmos homens e mulheres vinham para dar a dias, para trabalhar no terreno, para mondar e regar as bananeiras.
Eu gostava daquela casa à noite, ninguém se deitava cedo, à excepção do tio, todos iam para a cama tarde.
Lembro-me de a casa não ter luz eléctrica e mais tarde lembro-me das faltas de energia que nos surpreendia a todos, sobretudo nos dias invernosos e chuvosos.
E era disso que eu gostava, menina de cidade, adorava os ambientes do campo.
Gostava daquela cozinha, do lar, do forno a lenha, das panelas de ferro e de alumínio arreadas tão delicadamente que nos serviam de espelho, dos móveis pintados de azul anil, da mesa grande e comprida e das torradas feitas nas brasa do lar e sorvidas com uma grande chávena de café com leite. O café era de saco e o leite era de casa, da vaca que estava ali ao lado.
O ir para a cama era um dos episódios mais engraçados, subíamos as escadas, levantávamos o alçapão, entravamos directamente no quarto dos tios e passávamos para o nosso, sem corredora, era porta com porta.
Subíamos sempre de candeeiro a petróleo na mão, que nos alumiava ate a hora de já estarmos dentro dos lençóis.
Na minha casa no Funchal, os quartos não eram assim, havia uma corredora que os delimitava uns dos outros.
Eu gostava daquela intimidade, de ouvir a minha tia a ressonar e do meu tio a rezingar. Gostava daquela partilha de espaços pequenos.
O soalho rangia, as portas chiavam, os mínimos ruídos eram barulhos intensos no silêncio da noite.
O quarto era pequeno, mas acolhedor, tinha duas camas cada uma encostada à parede, uma escrivaninha muito alta, um guarda fatos daqueles que tem ao centro um grande espelho e mais um móvel pequeno.
A casa tinha uma casa de banho na rua, à noite quando havia vontade de fazer chichi, utilizávamos um penico que ficava debaixo da cama, a casa do Funchal não tinha nada disto.
Lembro-me ainda do luar, o luar que entrava pelas frestas dos tapassóis e fazia com que no quarto fosse quase sempre dia.
Conversávamos e riamos, riamos muito, até que o meu tio nos mandava calar.
De manhã, era a última a levantar.me, estava de férias, não havia escola, nem horários para cumprir.
Recordo com saudade o aroma do café acabado de fazer e do cheiro a ovos fritos, quando descia, dizia logo “tia eu quero um ovinho molinho e torradinhas com manteiga”.
A tia era uma mulher muito pequena com as pernas ligeiramente arqueadas, tinha um cabelo muito comprido que usava todo enrolado fazendo um carapito no alto da cabeça ou entrelaçado terminando da mesma forma.
A tia ria muito, estava sempre bem disposta, nunca gritava, não brigava, era uma mulher da terra, do campo, de muito trabalho.
Mesmo quando a tia ficou doente, e muito doente, a tia ria sempre, com gargalhadas, mas com tanta vontade que às vezes lacrimejava de tanto rir.

26.09.14

Sem comentários:

Enviar um comentário

Uma questão de atitude.

Uma questão de atitude. Iniciamos o percurso com um vento forte e frio, um pouco desagradável. Levamos com terra e poeira como se esti...