terça-feira, 30 de setembro de 2014

No regresso a casa,

No regresso a casa
Nos anos oitenta rumei a Lisboa, sozinha, uma miúda com 17 anos a iniciar uma nova vida.
Era mesmo uma nova vida em tudo. As primeiras experiências, o viver fora da casa dos pais, sem o apoio da família, gerindo uma mesada, sendo responsável e sabendo que estava ali por minha conta e com um dever, nunca chumbar um ano.
Não sabia ao certo o que me esperava. Era assim, não havia escolha, partilhar um apartamento com duas madeirenses, com quem nunca tinha falado nem tomado um café. Bastava o facto do meu pai conhecer as famílias, eram pessoas honestas, decentes e com boa reputação.
A coisa não correu nem bem nem mal, correu, ou melhor, correu como tinha de correr. O apartamento apesar de pequeno estava muito bem localizado, era num primeiro andar, tinha 2 quartos, sala cozinha e uma casa de banho.
Dividia o quarto com uma outra rapariga, que já lá estava num segundo ano de um curso muito exigente de ciências exactas. Só por isso eu já lhe tinha em muita consideração.
Eu que nunca soube lidar bem com os números, os cadernos quadriculados assustavam-me, as trigonometrias, as álgebras, as análises, só de soletrar o nome das disciplinas já me metia em sentido.
Olhava para ela e pensava, deve ser muito inteligente, para estar a estudar e lidar com números, equações, regras, cossenos, expoentes, funções e limites.
E ainda havia as fórmulas da química e as leis da física, ela tinha mesmo um QI acima da média
Eu, rapariga das letras, um pouco para enfrentar o meu pai, na sua autoridade e intransigência, bati o pé e disse que ia para um Curso de Sociologia e que depois vinha trabalhar para a prisão.
Ele que tinha interiorizado que a filha seria uma advogada, ficou desiludido, não tanto pelo curso escolhido em si, mas por saber que esta coisa da sociologia era estudos para pessoas de esquerda, comunistas e que de empregabilidade deixava muito a desejar.
Nunca chumbei nenhum ano e quando terminei não fui trabalhar para a cadeia, mas também não estive inserida em nenhum movimento revolucionário e a política nunca foi o meu forte.
Menos mal, o desgosto não foi assim tão grande e aqui cheguei passados 5 anos a até arranjei emprego.
Contrariamente a muitas amigas minhas madeirenses, a ida para Lisboa foi dos melhores tempos que vivi.
As colegas choravam, não se adaptavam, queriam regressar. Eu não digo que as saudades não me apertavam o coração, mas eu queria mesmo era viver. Viver o que ainda não tinha vivido.
Em casa dos meus pais, não saía à noite, como as minhas amigas, não ia bailes nem a festas, nem a viagem de finalistas, raramente ia ao Golden Gate e ao Apolo, apenas tinha liberdade para andar nos escuteiros e fazer acampamentos.
O escutismo era uma coisa para gente séria, tinha uma vertente religiosa, ajudava a formar o carácter de uma pessoa e o contacto com a natureza era saudável.
Em Lisboa dia a dia fui ganhando asas para um voo cada vez maior. No início ainda vinha as três épocas de férias à Madeira, depois passei só a vir duas vezes por ano, no Natal e nas férias grandes.
Na faculdade procurava não me juntar muito ao grupo dos madeirenses, nunca pertenci ou estive na casa da Madeira, nem fiz parte de convívios com os estudantes madeirenses. Eu queria era conhecer outras pessoas, gente nova, mais desempoeirada, livres de preconceitos e mesquinhices de um povo que está sempre atento ao que os outros dizem.
Convivia muito com um primo bem mais velho, que morava em Lisboa, fazia uma boa dezena de anos e já trabalhava há muitos anos. Às vezes, quando podia, fazia gazeta à faculdade, de preferência a uma 6ª feira e ia à pendura com ele numa viagem, ora pelo Algarve, ora pelo Alentejo, umas vezes a Setúbal, até cheguei a ir ao Marvão a Vila Nova de Mil Fontes e a Castelo de Vide.
No regresso a casa, à rua da Carne Azeda, nome de rua que durante anos tinha tanto pudor em pronunciar, sentia o cheiro a limpo, a cera de alfazema, a flores dentro de casa.
A minha mãe, uma mulher muito bonita, doméstica de profissão, a quem as vinte e quatro horas de um dia nunca lhe rendiam, andava sempre atrasada nas lides domésticas e nas horas das refeições.
Mas a casa, estava sempre imaculadamente limpa, o quarto cheiroso, as roupas brancas, os lençóis bem estendidos na cama, em cima da mesa-de-cabeceira e da cómoda um conjunto de naperons em bordado madeira e outros que a minha tia do Curaçau trazia quando nos visitava. E eu dava umas voltas pelo quintal para ver as flores novas, perguntava pelas vizinhas, pela família e pelos sobrinhos. Estão todos bem, estão todos muito grandes, dizia a minha mãe.
Na manhã seguinte acordava com as crianças mais pequenas a invadirem-me o quarto e ainda ensonada, descia e vinha para a cozinha tomar o café e ler o diário de notícias, quando a minha mãe ainda não o tinha emprestado à vizinha.
De Lisboa sentia saudades, da cidade onde eu passava anónima, dos colegas do Norte e de outras zonas com quem eu convivia na cantina do Lumiar, dos autocarros grandes e rápidos a se perderem nas avenidas, de passear e ver lojas pela Avenida de Roma de ir ao Centro Comercial Apolo 70, de ir ao cinema ao São Jorge e ao Londres, de ver o rio Tejo, de andar sem destino pela baixa, de colar a cara na montra dos Porfírios e de comer um hambúrguer no Great American Disaster com a minha colega de quarto.

30.09.14

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