No regresso a casa
Nos anos oitenta rumei a Lisboa,
sozinha, uma miúda com 17 anos a iniciar uma nova vida.
Era mesmo uma nova vida em tudo.
As primeiras experiências, o viver fora da casa dos pais, sem o apoio da
família, gerindo uma mesada, sendo responsável e sabendo que estava ali por
minha conta e com um dever, nunca chumbar um ano.
Não sabia ao certo o que me
esperava. Era assim, não havia escolha, partilhar um apartamento com duas
madeirenses, com quem nunca tinha falado nem tomado um café. Bastava o facto do
meu pai conhecer as famílias, eram pessoas honestas, decentes e com boa
reputação.
A coisa não correu nem bem nem
mal, correu, ou melhor, correu como tinha de correr. O apartamento apesar de
pequeno estava muito bem localizado, era num primeiro andar, tinha 2 quartos,
sala cozinha e uma casa de banho.
Dividia o quarto com uma outra rapariga,
que já lá estava num segundo ano de um curso muito exigente de ciências exactas.
Só por isso eu já lhe tinha em muita consideração.
Eu que nunca soube lidar bem com
os números, os cadernos quadriculados assustavam-me, as trigonometrias, as
álgebras, as análises, só de soletrar o nome das disciplinas já me metia em
sentido.
Olhava para ela e pensava, deve
ser muito inteligente, para estar a estudar e lidar com números, equações,
regras, cossenos, expoentes, funções e limites.
E ainda havia as fórmulas da
química e as leis da física, ela tinha mesmo um QI acima da média
Eu, rapariga das letras, um pouco
para enfrentar o meu pai, na sua autoridade e intransigência, bati o pé e disse
que ia para um Curso de Sociologia e que depois vinha trabalhar para a prisão.
Ele que tinha interiorizado que a
filha seria uma advogada, ficou desiludido, não tanto pelo curso escolhido em
si, mas por saber que esta coisa da sociologia era estudos para pessoas de
esquerda, comunistas e que de empregabilidade deixava muito a desejar.
Nunca chumbei nenhum ano e quando
terminei não fui trabalhar para a cadeia, mas também não estive inserida em
nenhum movimento revolucionário e a política nunca foi o meu forte.
Menos mal, o desgosto não foi
assim tão grande e aqui cheguei passados 5 anos a até arranjei emprego.
Contrariamente a muitas amigas
minhas madeirenses, a ida para Lisboa foi dos melhores tempos que vivi.
As colegas choravam, não se
adaptavam, queriam regressar. Eu não digo que as saudades não me apertavam o
coração, mas eu queria mesmo era viver. Viver o que ainda não tinha vivido.
Em casa dos meus pais, não saía à
noite, como as minhas amigas, não ia bailes nem a festas, nem a viagem de finalistas,
raramente ia ao Golden Gate e ao Apolo, apenas tinha liberdade para andar nos
escuteiros e fazer acampamentos.
O escutismo era uma coisa para
gente séria, tinha uma vertente religiosa, ajudava a formar o carácter de uma
pessoa e o contacto com a natureza era saudável.
Em Lisboa dia a dia fui ganhando
asas para um voo cada vez maior. No início ainda vinha as três épocas de férias
à Madeira, depois passei só a vir duas vezes por ano, no Natal e nas férias
grandes.
Na faculdade procurava não me
juntar muito ao grupo dos madeirenses, nunca pertenci ou estive na casa da
Madeira, nem fiz parte de convívios com os estudantes madeirenses. Eu queria
era conhecer outras pessoas, gente nova, mais desempoeirada, livres de
preconceitos e mesquinhices de um povo que está sempre atento ao que os outros
dizem.
Convivia muito com um primo bem mais
velho, que morava em Lisboa, fazia uma boa dezena de anos e já trabalhava há
muitos anos. Às vezes, quando podia, fazia gazeta à faculdade, de preferência a
uma 6ª feira e ia à pendura com ele numa viagem, ora pelo Algarve, ora pelo
Alentejo, umas vezes a Setúbal, até cheguei a ir ao Marvão a Vila Nova de Mil
Fontes e a Castelo de Vide.
No regresso a casa, à rua da
Carne Azeda, nome de rua que durante anos tinha tanto pudor em pronunciar,
sentia o cheiro a limpo, a cera de alfazema, a flores dentro de casa.
A minha mãe, uma mulher muito bonita,
doméstica de profissão, a quem as vinte e quatro horas de um dia nunca lhe
rendiam, andava sempre atrasada nas lides domésticas e nas horas das refeições.
Mas a casa, estava sempre
imaculadamente limpa, o quarto cheiroso, as roupas brancas, os lençóis bem
estendidos na cama, em cima da mesa-de-cabeceira e da cómoda um conjunto de
naperons em bordado madeira e outros que a minha tia do Curaçau trazia quando
nos visitava. E eu dava umas voltas pelo quintal para ver as flores novas,
perguntava pelas vizinhas, pela família e pelos sobrinhos. Estão todos bem,
estão todos muito grandes, dizia a minha mãe.
Na manhã seguinte acordava com as
crianças mais pequenas a invadirem-me o quarto e ainda ensonada, descia e vinha
para a cozinha tomar o café e ler o diário de notícias, quando a minha mãe
ainda não o tinha emprestado à vizinha.
De Lisboa sentia saudades, da
cidade onde eu passava anónima, dos colegas do Norte e de outras zonas com quem
eu convivia na cantina do Lumiar, dos autocarros grandes e rápidos a se
perderem nas avenidas, de passear e ver lojas pela Avenida de Roma de ir ao
Centro Comercial Apolo 70, de ir ao cinema ao São Jorge e ao Londres, de ver o
rio Tejo, de andar sem destino pela baixa, de colar a cara na montra dos
Porfírios e de comer um hambúrguer no Great American Disaster com a minha
colega de quarto.
30.09.14
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