terça-feira, 28 de outubro de 2014

A cantina do Lumiar,

A cantina do Lumiar,
Ficava num bairro de Lisboa, de classe média alta, novo para a época (anos 80), no Lumiar, numa transversal à Alameda das Linhas de Torres. Era uma cantina pequena, com um jardim grande à frente do prédio, um supermercado ao lado, um café em frente e uma residência universitária masculina também no prédio ao lado.
Fazíamos o trajecto a pé da nossa casa à cantina, era só uma ou duas paragens de autocarro. Passávamos pelo quartel do Lumiar, ouvíamos uns piropos dos magalas, a minha colega de quarto ouvia mais do que eu, ela era mais alta, usava sapatos com salto e por isso chamava mais a atenção. Eu ainda tinha aquele ar de “maria rapaz”, cabelo curto, calças de ganga e mocassins.
Pagávamos por uma refeição 35 escudos, a cantina tinha um horário de abertura ao jantar das 18:30 às 20:00. Quando eu não queria encontrar ninguém ou não estava virada para a conversa, bastava ir jantar, mais próximo à hora do fecho. Já não havia fila, eram só os atrasados e a comida também já escasseava.
Encontrávamos os amigos, os colegas e os conhecidos, conforme a hora que decidíssemos ir jantar. Os residentes da cantina eram sempre os do primeiro turno, os mais esfomeados, os mais assíduos, os mais carentes, os tão necessitados como eu.
Com eles fiz algumas amizades, conversas de circunstância, confidências de minutos de solidão e desconforto, muitas vezes palavras sem importância ditas para não ficar calada ou para não ser considerada menina “snob”. Falava com todos e claro, mais com os rapazes, os da residência. Lembro-me de quase todos, de um muito alto, de dois lá das Beiras, um do Fundão e um de Viseu, pequenos, com um ar muito tosco, humildes, um de Leiria, inteligente, culto e interessante, estudante de Filosofia, os outros na sua maioria eram todos estudantes de Direito. Havia também um grupo de açorianos, de madeirenses e de alentejanos, viviam todos naquela residência de 5 andares, em quartos partilhados. À excepção de um amigo de Filosofia, que infelizmente já não posso conviver com ele, todos os outros foram se saindo bem pela vida. Dois são Juízes, outros tantos exercem advocacia pelo país. Lembro-me de um, com ar mais espertalhão do que os outros, deveras sedutor, mas também baixote, no entanto com uma ambição inversamente proporcional à sua altura. Soube, não por ele, claro, que já tinha concorrido duas vezes ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e tinha chumbado. É assim, a vida não sorri da mesma forma para todos.
Enquanto esperava na fila, se fosse jantar, à hora de ponta 19:30, assistia a muitas zangas de momento, arrufos de namorados, marcação de encontros, esperas com desalento, tentativas de conquista e conversas, sempre as conversas dos mesmos galanteadores, a lançar isco a todas as caras novas que por lá apareciam.
Observávamos os novos estudante ou as caras desconhecidas e pelo que traziam nos braços tentávamos identificar o curso, se traziam batas brancas, vinham da Medicina, da Farmácia das Ciências e da Química, se vinham de máquinas calculadoras, eram do Técnico, Engenharias e Matemáticas, se traziam uma pasta na mão direita só podiam ser de Direito, se vinham com canudos eram da Arquitectura e das Artes se nada traziam a não ser os livros, eram os pelintras das Letras, Línguas, Literaturas e cursos afins
Nunca gostei da comida da cantina, e mesmo assim, aquela era considerada a melhor, porque era pequena e a confecção mais cuidada. Ainda hoje detesto comer num tabuleiro. Não gosto de ir para os centros comerciais, comprar comida a peso e vir de tabuleiro nas mãos para uma mesa.
Eu sempre fui de muito mau bico, mas devo de confessar que foi em Lisboa que aprendi a comer de tudo. Serviam canja numa tigela de plástico, sopa grossa, cheia de couve, cenoura, nabo e feijão. Nem queiram imaginar, eu que em casa da minha mãe comia a sopa em puré, tudo cremoso, tive de arranjar uns esquemas mentais e visuais para iludir aquela tigela. Como tinha direito a um papo seco, partia-o aos bocados e deitava na sopa, assim ia engolindo aquela miscelânea de verduras misturadas com o pão. Como também o segundo prato nem sempre era do meu agrado, peixe de rio, solha, salsichas com couve lombarda, ervilhas com ovos escalfados, pedia um copo de leite e um iogurte para sobremesa, penicava qualquer coisa do prato, e comia o restante.
A quem dava prazer ver comer eram os rapazes da residência, mais tinham, mais comiam. Os de lá de cima, da terra, tinham sempre no quarto uma ração de combate, enchidos, chouriços, broa, ficavam a estudar depois do jantar e ainda ceavam. Eram muito marrões, sobretudo os de Direito, nós ainda íamos para o café “Barão” e a seguir ainda vínhamos para casa ver a novela.
Mas todos nós, gostávamos daquela cantina, daqueles encontros diários, das trocas de olhares, dos sorrisos de mesa para mesa, dos pontapés dados por debaixo da mesa, tudo sem querer, tudo sem um propósito, daquela hesitação de quando se vem de tabuleiro na mão em direcção àquela mesa, aquele espaço estratégico que arranjámos para nos posicionarmos de frente por quem andávamos caidinhas na altura, tudo tão especial, tudo tão romântico, despretensioso e genuíno.
De vez em quando a malta depois de ter terminado o curso ainda voltava lá, mas já vinham diferentes, de fato, gravata e pastinha de cabedal preta na mão. Ainda tentei após terminar o curso, voltar à casa, ao espaço que dividi durante 5 anos, um dia senti que as caras já não me eram familiares. É preciso fazer um corte e libertar as amarras.
Não esqueço porém, como ali e por aquelas redondezas, muito cresci, muito aprendi, alguma coisa sofri também, fruto da minha ingenuidade e da candura própria de quem tem 18 anos e se vê numa grande cidade, sozinha e por conta própria.
Não voltei a ser assim com era. Não voltei a ser assim tão feliz. Há já algum tempo que deixei de ser tão autêntica. Tenho saudades de mim.


28.10.14

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Na rua e em casa.

Na rua e em casa.
Todos os anos antes de iniciar o período escolar era preciso comprar os sapatos para o colégio. Tinham de ser azuis escuros, da mesma cor que a farda. Eram sandálias inglesas e comprados invariavelmente na Sapataria Modelo. O meu pai não era adepto de saldos para sapatos, comprava-se quando era necessário. Eu vinha ter ao trabalho dele, à Manteigaria Zarco, ou vinha acompanhada de uma das minhas irmãs, escolhia os sapatos, ele depois passava por lá e pagava. Todas as compras eram efectuadas na artéria da Rua Dr. Fernão de Ornelas, à excepção da Casa Mendonça, onde o meu pai comprava os casacos de fato e os coletes de malha. Lembro-me perfeitamente de na altura, estudante de liceu, surripiar os coletes de malha Wollmark, azuis, bege e verdes. Aqui para nós, sei que faziam um sucesso enorme.
As compras lá para casa vinham também da Manteigaria Zarco, depois de a minha mãe fazer uma lista e de uma triagem especial feita pelo meu pai. Na mesma rua, ficava o Carlos Fotografo, o Dr. Adolfo Brazão, a Farmácia Morna, a Casa Tininha, o Sino a Pretinha do Café, e o mercado. Os livros e restante material escolar era um pouco mais longe, lá para os lados do Largo do Colégio, na Papelaria do Colégio com o Sr. Correia, nosso vizinho de rua e já falecido.
Não havia quem não conhecesse o meu pai naquela rua, ele andava de loja em loja, só de camisa e gravata, vestia o casaco quando saia às 13 horas para vir a casa almoçar. Nunca o meu pai foi trabalhar sem gravata, o casaco e um molhe de chaves na algibeira. Recordo-me tão bem do barulho que faziam aquele molhe de chaves sempre que ele entrava em casa.
O meu pai nunca conduziu, nunca teve um carro, mas os amigos e vizinhos das lojas da Rua Dr. Fernão de Ornelas, todos os dias davam-lhe boleia para casa, raramente vinha de autocarro, à excepção dos domingos quando ia à missa. Aos domingos íamos sempre à última missa, quase sempre à Igreja do Colégio e chegávamos sempre atrasados. A minha mãe para se despachar ia às vezes à Igreja de Santa Luzia. Quando a missa terminava havia sempre a mesma discussão, se íamos ao Café Apolo ou vínhamos de táxi para casa. A minha mãe era uma mulher de poucos luxos, mas gostava daquele bocadinho dentro da Apolo, onde ela tomava uma chinesa e um bolo de arroz e ficava a olhar para as roupas das senhoras que por lá passavam na expectativa de tirar o modelo para pedir à D Cecília um vestido igual. A minha mãe tinha o condão de que, tudo o que via nos outros ia-lhe ficar bem, era o modelo, a cor, o tecido, e depois quando ia à loja para comprar nunca encontrava nada igual ao que tinha visto. Não era fácil satisfazê-la. Até as filhas dos outros eram sempre melhores que as dela. Era uma batalha perdida para nós, sempre foi assim durante toda a vida.
Bonita, alta, elegante, mas muito perdida no espaço onde vivia, não gostava da cidade, preferia ter antes ficado no local onde nasceu, em Santa Cruz, tal como viviam as irmãs e o irmão. Mulher demasiado selectiva, discreta, e cujos sonhos ficaram sempre aquém da vida que teve. Não gostava de praia, nem de festas, mas adorava cantar e cantava tão bem o fado. Sempre os fados da Amália, só cantava quando estava descontraída e reunida com a família em Santa Cruz, nunca perto do meu pai. Ele achava que aquilo não era coisa para uma senhora, casada mulher de respeito e mãe de filhos. Cantar para o meu pai, estava associado à noite, à galdeirice e a estilos de uma vida boémia.
A minha mãe raramente saía de casa, descia ao Funchal para vir ao médico ou à caixa com algum filho, para vir ao Salão Morena na Rua do Aljube, para ir à casa das Linhas, comprar fechos, botões, carros de linhas, entretela e forro para as roupas que cuidadosamente fazia para nós, para ir à casa da Vizinha Graça junto à Ponte de Pau, para ir à costureira, esta ultima vivia um pouco mais longe, por isso às vezes era ela que vinha a nossa casa.
Era tão selectiva que até os cozinhados eram escolhidos a dedo, não variava muito os pratos mas o que fazia era perfeito. Não gostava de marisco e não era qualquer peixe que ela autoriza entrar na sua cozinha. Lembro-me dos melhores filetes de espada que comi até hoje, espalmados, lourinhos e estaladiços, de uma carne assada que se desfazia na boca, de um arroz acastanhado, de umas bolinhas de carne, de um pudim de pão com uma cobertura de claras em castelo (suspiros), de um pudim de bolo com custard, de umas fatiotas fritas no molho da carne de vinha de alhos. Ela sabia no que era perfeita e jogava com isso, muitas vezes o meu pai queria ter convidados em casa, a contragosto dela, e era o cabo dos trabalhos para a convencer a receber uns comensais para o almoço. Dava muito trabalho, ela atrasava-se sempre, e ele discutia, porque as pessoas estavam esfomeadas e era feio estar muito tempo à espera, mas assim que as travessas chegavam à mesa, ninguém mais ouvia a voz do meu pai, o que se ouvia eram só elogios e todos para ela.
E eram assim os meus pais tão diferentes entre si, ele um homem de rua, extrovertido, folião, sempre um homem com muito apetite, ela uma mulher da casa, recatada, com um humor muito cáustico, que só comia não porque tinha fome, mas porque era preciso comer qualquer coisa. Nas diferenças tinham qualquer coisa em comum, uma tenacidade e capacidade de lutar pela vida, pelo bem-estar dos filhos e por um futuro melhor.
Não é por acaso que ele com 92 anos e ela com 87 vivem ainda os dois juntos, ainda na sua casa e ainda com a companhia diária dos filhos e com almoços em família aos fins de semana, sempre, sempre na casa deles, na casa onde educaram os filhos e hoje recebem e acarinham netos e bisnetos.
15.10.2014


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A casa do meio,

A casa do meio,
Era a casa maior e mais moderna, era de um piso só, com janelas beijes e paredes cor-de-rosa. Havia um quintal de cimento à volta de toda a casa e um varandim a separar para o jardim e as árvores de fruta.
Aos sábados aquela casa renascia, abriam-se os tapassóis, estendiam-se as colchas e os cobertores nas janelas para arejar, os tapetes vinham à rua, varria-se todo o quintal, limpava-se areava-se tudo e mais alguma coisa.
Eu não gostava nada daquelas lides de todos os sábados, apetecia-me fugir e regressar à noite. Ao sábado não podíamos ir à praia, porque era dia de limpezas, e eu nunca compreendi porque ponham as crianças a arrumar a casa.
Por vezes ainda tínhamos de ir ajudar numa limpeza a casa de um tio solteiro ou auxiliar uma prima que vivia só com um irmão numa casa grande.
Só gostava que me mandassem à venda para comprar alguma falta de última hora, a lixívia, o sabão azul, a cera para o chão ou uma garrafa de laranjada para o almoço.
Também gostava de quando o dia finalmente terminava, e lavávamos o quintal de balde e de mangueira, quando sentíamos de facto a casa fresca, os quartos limpos, a cama com roupa a cheirar a lavado e primorosamente engomada pela minha prima.
Gostava imenso e divertia-me a lavar o cabelo. O cabelo era lavado na rua, no quintal à frente da cozinha, numa banheira. Eu e a minha prima seguíamos um ritual para aclarar as pontas de cabelo, deitar cascas de cebola na água e lavar com aquela mistela. Sempre acreditamos naqueles feitos e julgamos durante muitos anos ter uma cor de cabelo mais clara que a das outras primas.
Uma delas usava um champô de camomila que dizia manter a cor de louro, mas o cabelo dela era bem mais claro que o nosso, ela já trabalhava, bem podia dar-se a esses luxos, nós usávamos sabão azul, diziam que o cabelo ficava brilhante.
Nesta casa jantávamos sempre muito tarde e nunca nos deitávamos no mesmo dia em que acordávamos. Ainda hoje, é assim, as primas são sempre as últimas a se deitarem, alias a tia é sempre a última.
Já de noite, recordo-me de finalmente agradecer por aquele dia ter passado tão rápido, desejando que o Domingo chegasse logo para ir à missa das nove ou das onze com a tia e as primas. A igreja enchia de gente, as primas, sempre atrasadas ficavam num cantinho atrás do lado esquerdo, à saída íamos ao café do “Matos” comer um gelado e às vezes ainda passávamos pela praça do peixe
Faltava ainda um pequeno senão, quando não tínhamos boleia do tio, na furgoneta Peugeot ou no BMW do primo, subíamos o caminho do Janeiro a pé, era dose, acreditem!
O almoço era sempre um banquete, com direito a sobremesa, pudim ou bolo. À tarde íamos ao Santo, às vezes à Portela beber uma ponha, ou o primo levava-nos ao Hotel Holiday In ou à Matur para beber um café e passear.
No final do dia e já em casa, aparecia sempre gente no terreiro, emigrantes vindos da Venezuela e do Curaçau, amigos do tio, família do Funchal e da Recta do Santo da Serra, e vizinhos. Vinham dar dois dedos de conversa, bebericar um copo de vinho e saborear um pratinho de azeitonas, outro de tremoços e um dentinho de queijo.
Apareciam mulheres, a prima da casa de baixo, uma outra prima muito alta de cabelos compridos e as vizinhas solteiras e ainda duas irmãs muito faladoras, uma delas mais evoluída na vida, trabalhava nas limpezas no Aeroporto, já tinha feito algumas viagens. Contava como o mundo era diferente no Canadá, que o frio não se sentia, era tudo aquecido e as pessoas apesar de trabalharem muito, viviam muito melhor do que em Santa Cruz, donde tinham saído há alguns anos atrás.
Falavam da vizinhança que tinha emigrado para a Venezuela e para o Curaçau, falavam da vida que eles por lá tinham, dos namoros, dos casamentos, dos filhos nascidos em terras estranhas, às vezes levavam fotografias e cartas e pediam às minhas primas para as lerem e darem uma resposta breve.
Eu gostava de ouvir as conversas, e de fazer perguntas, gostava do licor de caramelo e do licor de tangerina que bebia e devorava até não haver mais liquido.

10.10.14

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A casa da avó,

A casa da avó,
A avó vivia numa casa de uma família inglesa. A bem dizer a avó era governanta nessa casa. O avô era o cozinheiro, mas depois dele falecer, ela passou a substitui-lo e a menina Carolina ficou no lugar da avó.
A casa ficava situada na Travessa do Rego, nº 9, era uma quinta, com um grande jardim, com palmeiras e árvores de fruto, também tinha no fundo do jardim uma casinha de prazeres, um lago com patos e uma capoeira com galos e galinhas. À frente da casa ficava a Escola Industrial do Funchal, atrás era a casa de bordados, ao lado esquerdo o Hotel do Carmo e no lado direito a Serragem da Madeira.
Uma das sobrinhas da senhora inglesa tinha menos um ano do que eu, era bonita, loura, usava tranças e foi uma das minhas companhias de infância. Subir às árvores, correr e andar de bicicleta entre os canteiros, eram as nossas brincadeiras.
Eu tinha um fascínio por aquela casa. Toda ela era muito clássica. Para chegar à porta principal havia uma escadaria, larga o suficiente para transmitir a sua imponência. No primeiro andar situavam-se as salas e no segundo andar os quartos de dormir, ainda havia um rés-do-chão onde se localizavam os quartos dos empregados. Esta última zona não me agradava nada visitar, era sombria, escura, triste, quase não havia luz, as janelas eram pequenas, com aberturas para o exterior e com um gradeamento de ferro que dava para um beco. O beco separava a casa do Hotel do Carmo.
Sempre que tentava espiolhar para as saletas ou para a sala de jantar os meus olhos prendiam-se nas poltronas forradas a veludo vermelho e dourado, nas pratas distribuídas pelo sideboard e outros móveis ao bom estilo inglês, nos candelabros, no relógio de caixa, um grandfthader, tudo aquilo para mim era um outro mundo. Parecia um quadro extraído dos filmes ingleses que víamos na televisão, tipo Madame Bovary. A escadaria que ligava aos quartos de dormir, toda ela forrada por uma passadeira de veludo vermelho, só de olhar ficava intimidada e não ousava passar do primeiro degrau.
De vez em quando assustava-me com o toque das sinetas, eram as senhoras a anunciar que precisavam de qualquer coisa, as “criadas” que estavam na cozinha avançavam de imediato para satisfazer os pedidos.
A cozinha era o espaço onde a minha avó reinava, era grande, tinha um enorme fogão a lenha, com gavetas, e portas, tinha pendurado no teto uma espécie de gaiola, forrada a verga muito fininha, lá havia sempre um pratinho tapado com restos de comida, sempre tive curiosidade em descobrir se aqueles alimentos eram para as empregadas, mas nunca vim a saber ao certo. Mesmo no meio da cozinha havia uma mesa de madeira grande com duas gavetas. Era dessas gavetas que milagrosamente saíam bolos, scones e outros doces feitos pela mão da minha avó. É engraçado como desde muito cedo eu descobri o vício dela em esconder comida. Anos mais tarde, já a viver em casa dos meus pais, ocultava comida nos bolsos dos vestidos, dos aventais e pelas gavetas dos armários.
Sempre sentada à volta da mesa a preparar legumes, a mexer massa de bolos, ou a fazer sandes, estava a menina Carolina. Destes tempos idos recordo-me do chá preto com leite e dos scones que a minha avó me presenteava quando ia fazer-lhe uma visita.
A Miss, a senhora inglesa, era professora de inglês na academia e dava explicações em casa. Todas as minhas irmãs, à excepção do meu irmão mais novo e de mim, foram alunas dela. Algumas vezes aparecia pelo jardim para passear e descontrair as pernas enquanto esperava pelos alunos. Era muito branca, tinha uma camada rosa de pó de arroz espalhada pela cara e cheirava a colónia de bebé. Era solteira, nunca tinha casado.
Recordo-me também das meninas inglesas mandarem roupa para a minha mãe, a qual habilidosamente desmanchava e fazia vestidos dignos de capa de revista.
Depois de a minha avó ter morrido, a Miss ainda por lá ficou uma serie de anos sempre a dar explicações. Adoeceu, ficou só e desamparada, entretanto descobri que foi internada num lar em Machico e morreu anos mais tarde. A única visita que tinha esporadicamente da família era um sobrinho. O sobrinho era o irmão da inglesinha que brincava comigo, muito mais velho do que ela, era um bonito homem, tinha uns olhos verdes muito lindos.

Fiquei sempre sem saber o que foi feito daquele espólio todo que havia na casa, se venderam ou se distribuíram pelos herdeiros. Hoje a casa já não existe, foi demolida e construído um outro edifício. Sei apenas que, daquela família a única pessoa residente na Madeira é o sobrinho, passo por ele algumas vezes de carro, eu reconheço-o mas ele não me conhece.
A irmã, a inglesinha, vive em Lisboa, há uns anos esteve aqui na ilha e telefonou para casa dos meus pais, queria encontrar-se comigo. Estivemos juntas, qualquer uma de nos já tinha dois filhos.
Achei curioso e fiquei feliz quando me apercebi que o marido dela chamava-se António e cada um dos seus filhos tinham o nome da minha avó, Maria e do meu avô, António.
02.10.2014








Uma questão de atitude.

Uma questão de atitude. Iniciamos o percurso com um vento forte e frio, um pouco desagradável. Levamos com terra e poeira como se esti...