terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A primeira oitava,

A primeira oitava,
O 26 de Dezembro é tolerância de ponto, assinalado como a primeira oitava, e sempre foi o dia de visitar a família, íamos invariavelmente a Santa Cruz.
Primeiro era a família do meu pai, muito pequena, resumia-se apenas a uma casa, uma tia que vivia no Sitio do Cano, mesmo por detrás do Aeroporto. Era uma casa, que durante muitos anos sempre me pareceu em obras, as paredes exteriores em cimento, só depois de já bem crescidinha, a vi caiada de branco. Faziam uns dentinhos que o meu pai gostava, carne de vinha de alhos, galinha e um bom pão de casa.
O meu pai levava para oferecer, o queijo, a manteiga, as broas e os bolos de mel. Era assim para todas as casas das tias, primos e primas.
Eu queria que naquela primeira casa, a visita fosse bem rápida, para subirmos ao Janeiro e ir às outras casas, pois a convivência com as outras primas (os) era muito maior.
No Janeiro íamos entrando de casa em casa, por vezes subíamos por cima pelo Sítio do Valente e fazíamos a visita no inverso, pela descida.
O ritual era sempre o mesmo, ver o presépio, provar o vinho, um dentinho, falar com os familiares sobre os terrenos, a família emigrada, os filhos que estavam a crescer e a vida que não para e a vida que é dura.
Tinha um primo que reservava sempre um quarto para a “lapinha,” com tudo o que ela tinha direito, aldeia, igreja, banda de música, cabrinhas, agua, musgo, luzes e pós brilhantes espalhados pelo papel pintado com viochene.
Nas outras duas casas de baixo era diferente, iam-se adaptando aos tempos modernos, sem se perder as tradições faziam-se inovações. Achava interessante os enfeites que se pendurava na parede e nas portas dos quartos, uns laços, com folhas de azevinhos e outros ramos verdes, ora ornamentados com uns sinos, às vezes umas bolas às cores, umas velas ou ainda quadrados pequeninos simbolizando presentinhos de natal. Era tudo feito com o máximo cuidado, quer na conjugação das cores, com os móveis e com os espaços diferentes, fosse na sala, no corredor ou na cozinha.
O presépio era sempre mais pequeno, mas muito delicado, um bom menino jesus, com vestido de linho e bordado madeira, utilizavam pedras, rochas e galhos para imitação da gruta, simbolizando o nascimento, a vaca e o boi. Tudo servia para demonstrar a simplicidade e a modéstia no nascimento de Jesus.
As casas estavam imaculadamente limpas. Na altura da Festa, caiavam-se as casas, pintava-se a cozinha, a mesa, as cadeiras e os armários. Utilizava-se loiça e toalhas novas, os bordados e os naperons eram primorosamente engomados. Havia sempre qualquer coisa de novo, umas cortinas, um tapete, um candeeiro, uma mesa, um objecto diferente.
Os convites para o jantar eram disputados entre as duas casas, “jantas aqui, não, ali em baixo, este ano não jantamos, vamos mais cedo”, era sempre difícil acertar com o sítio certo onde íamos jantar. Não queríamos ferir susceptibilidades mas quase sempre comíamos na casa do meio. Tinha mais gente, mais primas, mais mulheres e era maior.
Jantávamos sempre muito bem, era a canja, a carne assada feita pelo Tio, a galinha a carne de vinha de alhos, o pão, o vinho e uma panóplia de sobremesas. As primas, aqui davam asas á imaginação e á criatividade, faziam sempre umas coisas diferentes. Recordo um bolo de caramelo recheado com nozes, pudim de maracujá, de ananás, outro de frutas muito picadinhas, e bolo de bolacha com creme de café. Gostava também do café de saco e já açucarado que se tomava a seguir ao jantar.
Depois do jantar ou antes no dia de Natal à noite, chegava o meu primo de Lisboa, passava a época até o final de ano. A sua presença aquecia o espaço, o sorriso dele enchia a alma, trazia bolachas ou caramelos para as tias. Às vezes a Tia do Curaçau também lá estava para passar o Natal em Santa Cruz. Hoje, a única filha dela fala em um dia vir cá passar o Natal. Ando sempre a insistir para que o faça o mais rapidamente possível, enquanto as casas existem, enquanto temos a família, enquanto os laços ainda são estreitos.
As primas ainda colocavam na mesa uns aperitivos deliciosos, umas azeitonas previamente preparadas com o alho, orégãos e pimentos, amêndoas torradas e salgadas, broas e outras iguarias. Não esqueço os licores, o meu preferido, o de tangerina, mas também havia um de caramelo muito bom.
Ainda íamos à casa de baixo, à última, nessa a minha mãe levava sempre uns presentes diferentes, era uma camisa para o primo, um pijama para a prima, umas meias ao tio. Eu sempre percebi porque ela os mimava de uma forma diferente, tinham perdido a mãe, e aquilo era uma atenção especial. Éramos sempre muitos, a família quando se reunia, não parava de comer, de falar, de falar sempre muito alto e o regresso era sempre muito tardio.
O meu pai jogava à bisca com os tios e os primos e no final era sempre um baralho de cartas rasgado, aquilo era à séria. Eu nunca participei nos jogos, sempre tive mau perder, preferia ficar na conversa com as primas ou a ouvir o meu tio a contar anedotas. Todos riam com vontade, ele tinha muito jeito e sabia sempre uma nova. O tio ainda é vivo, já passou dos 90 anos, solteiro, um homem muito alto, que esteve emigrado na Rodésia, passou também pela África do Sul. Um homem com vivências interessantes, único homem entre cinco mulheres. Foi dos primeiros do sítio a ter carro e por isso era assediado a fazer de táxi e a levar pessoas de um lado para outro. Era muito cúmplice com a minha mãe, e muitas vezes quando vinha á cidade passava sempre pela minha casa. Nessas visitas, onde se sentava na mesa da cozinha a tomar um café, conversava e deixava a minha mãe satisfeita. Lembro-me de ele dizer “o que fazes mulher, que não comes”, “teu marido põe-te à fome”, a minha mãe sempre foi muito magra, sempre foi uma mulher de pouco apetite e não comia muito.
À noite ainda aparecia por lá um grupo de cantares da época, vizinhos que vinham com o rajão, a braguinha o acordeão e a gaita, tocar e cantar, desafiavam a minha mãe para cantar o fado, mas com o meu pai lá presente era coisa que não chegava a acontecer.
Neste dia via a minha mãe feliz, alias sempre que a minha mãe estava em santa Cruz, reunida com as irmãs, as sobrinhas e no fundo com toda a família dela, a minha mãe era feliz. Era ali o espaço dela, que foi teimosamente roubado pelo meu pai quando se casou e vieram viver para o Funchal.
Após a morte do meu tio, já lá vão pelo menos dois anos que deixamos de cumprir este ritual, por uma maneira ou por outra deixamos de lá aparecer. Lamento muito perderem-se estes hábitos, mas à medida que uns vão nos deixando, outros vão chegando, tudo se vai alterando, e quando damos conta quase acabamos por perder as nossas raízes. A Família vai ficando mais circunscrita à casa, aos filhos, aos netos, aos sobrinhos netos, e os outros ramos vão se apagando à mercê do tempo.

30.12.14

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ao Tomas,

Ao Tomás
Porque hoje fazes 21 anos. Foi naquele fim de tarde do dia mais frio do ano de 1993, que nasceste tu franzino, de pele enrugadinha e muito cabelo escuro.
Hoje, és já quase um homem, com alguma maturidade intelectual e física, o suficiente para seres responsável pelos teus atos.
Sinto-te a crescer, a ganhares asas, a começares a pensar por ti, a saberes fazer as tuas opções, a seres criterioso, crítico e dono do mundo, como te sinto muitas vezes nas considerações que vais tecendo sobre o estado do país, das forças de autoridade ou da forma incontrolável como o homem vem destruindo o seu planeta.
Muitas paixões acalentaste desde a infância até a tua adolescência, o futebol, o BTT, as saídas nocturnas, os amigos, os copos, as motas, os desenhos, a viola, as letras, as músicas, o voluntariado que fizeste no ultimo ano antes de ires para a faculdade e por ultimo a escrita, não te conhecia este ultimo talento, mas deste-me um prazer enorme.
Nunca gostaste muito da natação, talvez por seres sempre muito magro, sentias bastante frio e na creche eu sabia que esses dias eram uma tortura. No Liceu tudo fizeste para te baldares às aulas de Educação Física no dia de piscina.
Nunca dormiste muito, desde bebé sempre foi difícil fechar-te o olho, no carro a caminho da creche ou durante um passeio, enquanto o teu irmão adormecia só com o motor do carro a trabalhar, tu mantinhas os olhos bem abertos, atento a tudo o que se passava à tua volta, colavas a tua cara à janela.
Sempre foste muito rezingão, com mau humor, não gostas de beijos nem de grandes demonstrações de afeto, mas eu sei que precisas desses afetos, de abraços, de colo, de companhia, de ternura e de carinho.
Sei que posso contar sempre contigo, sei que tens um coração muito grande, que quando cresce muito, começa a doer, deixa de caber aí dentro, o espaço míngua. Gostava que o partilhasses mais vezes com a mãe, ficas no silêncio, não dizes nada, mas se calhar eu poderia ajudar-te. Prometo que só te abraço, não faço perguntas, não te cubro de beijos e não te mexo no cabelo.
As tuas palavras custam a sair, parece-me que se elas pagassem um imposto por ficarem aí dentro, tu hoje eras um milionário e eu não passava da rua. As minhas saem quase sem eu dar por isso. Talvez se eu aprendesse a contê-las, ganhava mais a tua confiança.
Não questiono e sei que gostas de mim, mas nem sempre fomos os mais afetuosos um com o outro, tivemos muitas discussões, esbarramos muito os dois, às vezes sinto-me incompreendida, se calhar com o passar dos anos vais aprender a conhecer-me melhor e a confiares em mim.
Tens sempre as mãos muito geladas, tens sempre muito frio, és muito requintado nas tuas amizades e não só, a comida, as roupas, os sapatos, até os lençóis e o pijama, tem tudo de ter requisitos muito próprios. Não comes do mesmo prato que outra pessoa, não tocas no pão se alguém já o beliscou primeiro, nunca terminas a refeição, deixas sempre qualquer coisa no prato, desde criança, que sem qualquer resultado eu tento que não deixes restos.
Gosto especialmente da tua expressão, do teu ar sereno, do teu olhar penetrante, e do teu sorriso envergonhado, da entrega da tua mão, do teu cheiro que fica pela casa, dos teus gestos, os teus sons, os teus hábitos, e de todas as tuas coisas que ficaram infinitamente intocáveis no teu quarto quando foste para Lisboa estudar.
Debaixo da tua timidez esconde-se uma grande pessoa, um amigo, um filho, que tem um coração cheio de sonhos, aventuras, recordações boas e menos boas, alegrias, tristezas e mágoas.
A ti filho, que tens seguramente uma longa vida pela frente, anseio para que não desistas dos teus quereres, nem das tuas vontades, tudo se conquista, quando se quer muito uma coisa, com persistência e tenacidade, tudo se alcança.
Vinte e um anos são apenas alguns. Alguns dos muitos que hás-de viver, gostaria eu que o fizesses intensamente, com vontade, com garra e com alma de viajante. Eu acho que tu tens alma de caminhante, daqueles que por onde vão e passam deixam algo, que os identifica e os distingue dos demais.
Tudo o que lembro agora destes anos vividos juntos é que foi sempre muito bom. Foi tudo com muita felicidade. Felicidade por tudo e por nada. E é pelas pequenas coisas, pelos grandes momentos, pelas conversas sempre curtas, por todos os risos e por cada lágrima e pelos silêncios verdadeiros, que tu bem os conheces que hoje agradeço por existires na minha vida.
Ficaria aqui a escrevinhar mais umas quantas coisas, mas sei que me vais criticar, por isso prometo não gastar mais palavras.
18.12.14


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Natal em casa,

Natal em casa, 
A minha mãe era uma pessoa atrasada por natureza. Tive sempre a sensação que ela vivia a pensar que o tempo lhe ia render mais do que efetivamente as 24 horas que tinha um dia. Embora de ano para ano tentasse programar as coisas a longo tempo, era inevitável, chegávamos à véspera de Natal e ainda havia tanta coisa para fazer. Era uma mulher muito perfeccionista, tudo tinha de ser bem feito, como ela queria, como ela pretendia, sob o seu olhar atento e perscrutador.
A minha mãe não era uma pessoa de muitas conversas, era tímida, falava pouco, observava muito, tinha até um ar altivo, que para quem não a conhecesse bem julgava tratar-se de uma pessoa arrogante. Era uma mulher muito bonita, elegante, discreta, de bom gosto, algo requintada, uma pessoa muito bem formada.
Nunca trabalhou fora, era doméstica de profissão e mãe a tempo inteiro, mas suponho que tinha uma alergia a relógios e a controlar o tempo.
Os preparativos para o Natal poderiam começar com a antecedência de um mês, no entanto nunca as coisas estavam prontas atempadamente.
Eu às vezes até a compreendo, ainda hoje, não gosto destes dias de antecedência, não gosto daquelas limpezas profundas, dos afazeres, das azáfamas da época, das únicas coisas que faço com prazer nesta época é cozinhar, por a mesa, fazer jarras, e enfeitar a casa.
A campainha da casa não parava de tocar nos dias da festa, eram prendas que vinham entregar ao meu pai, dos amigos do Sino, da firma Martins e Rebelo, da Ilma. dos compadres (pelo menos 6), da Farmácia, dos afilhados, da loja onde ele comprava os fatos e as camisas, etc. Eu gostava de ver aqueles embrulhos de papel colorido, com renas, pais natais, bolas, arvores, flores, anjos e estrelas.
A véspera de Natal era sempre o dia mais crítico, o meu pai chegava a casa mais cedo, sempre muito bem-disposto, entrava a cantar, tomava banho e colocava discos de vinil com músicas de Natal, recordo-me particularmente de ouvi-lo cantar “silent night, noite feliz e jingle bells”. Só o ouvi a cantar no dia 24 de Dezembro.
A minha mãe nos seus afazeres, atrasada, atrapalhadíssima, cansada e de mau humor, não estava para muitas folias, enquanto ele, já preparado para querer ir para a missa do galo, ela, apenas desejava descansar.
A cera já estava dada pela casa toda, cheirava bem, cheirava a alfazema, mas ainda faltava puxar o lustro com a máquina, colocar os vasos de flores e plantas dentro de casa, escolher os naperons de bordado madeira, fazer as jarras, e ajeitar mais uma coisa ou outra.
Havia ainda os preparativos da cozinha, o meu pai exigia canja de galinha e sandes da mesma para comermos à chegada da missa do galo. A carne de vinha de alhos já estava no frigorífico bem preparada para o dia de Natal.
O pinheiro e a lapinha já estavam feitos, pela minha irmã mais velha, também sempre tudo à última da hora, mas as searinhas, o trigo tinha sido posto nesse dia ou no anterior, por isso elas só deveriam aparecer bem depois do Natal.
A minha mãe incomodava-se com os telefonemas, tiravam-lhe tempo, estava sempre a interromper o que estava a fazer para ir atender o telefone. Lá em casa era hábito o telefone tocar durante muito tempo até que alguém atendesse, o que sendo curioso também acontece na minha própria casa.
Telefonavam os amigos que tinham emigrado para a França, para a América, para a Venezuela, mais os que estavam no Continente. O meu pai gostava de falar com todos esses amigos, falava muito alto, como se estivesse mesmo, mesmo, do outro lado do mundo.
Tudo sempre até á última a casa ficava perfeita, fresca, cheirosa e bem arrumada, mas o meu pai zangava-se sempre com a minha mãe no dia 24 de Dezembro e acabávamos por ir para a missa do galo sem a minha mãe. Não tenho muita memória de ela nos acompanhar. Íamos sempre à Igreja da Sé, o meu pai gostava de chegar a horas, entravamos pela porta traseira, ficávamos ao lado da sacristia e eu acabava sempre por me sentar numas escadas que ladeavam a porta de trás. O meu pai gostava da missa da Sé, porque era celebrada pelo bispo e ele falava também outras línguas, o inglês, o francês o alemão o espanhol e o italiano. Cantavam o Gloria In Excelsis Deo e Glorias e Aleluia. Penso que na cabeça do meu pai, isto era muito chique. Encontrava também os meus amigos, que apesar de entrarem na igreja, não assistiam à missa, vinham depois para a rua, largar bombas, fumar, beber e galhofar. E eu, que tinha ordem para não sair da igreja ficava ali a roer-me de inveja, desejando ir lá para fora e juntar-me aos outros. Contudo, sabia escolher bem o meu ponto estratégico, ali sentada nas escadas via todos os que iam entrando e saindo da igreja, digamos acabava por ficar um nadinha consolada.
Terminada a missa regressávamos a casa para cearmos a canjinha e as sandes de galinha. Já cansada não ia para a cama sem antes deixar o meu sapinho junto à árvore de Natal. Curiosa e com dificuldade em adormecer, vinha silenciosamente escada abaixo, pé entre pé, espreitar a árvore e os presentes.
O acordar do dia 25 era muito original em minha casa, diria eu, único, a minha mãe acordava-nos com um quebra jejum. Ia ao nosso quarto com um tabuleiro onde continha, um copinho de genebra ou de licor de tangerina, uma fatia de bolo de laranja, broas de mel, bolo de mel, laranja e tangerina. Sentava-se a beira da cama para nos desejar um bom natal e só depois de comermos é que vínhamos para baixo abrir as prendas. Nunca havia muitas, é certo, mas as que havia eram mesmo as que eu esperava.
O pequeno-almoço era tardio, como a tradição imponha a carne de vinha de alhos, com as fatiotas e o café preto, o almoço pelas 15 da tarde era a galinha ou a carne assada. Havia sempre uma sobremesa deliciosa, que era o pudim de pão e suspiros, o pudim de bolo com custard à inglesa e o pudim de “veludo” (de ovos).
À noite voltávamos a colocar na mesa o frango a carne assada, a carne de vinha de alhos e as fatiotas.
Quando nós eramos pequenos os presentes abriam-se no dia 25 de manhã, hoje todos têm as suas famílias nucleares e só lá vão a casa no dia 25 ao jantar, os presentes abrem-se depois com um ritual que foi instituído após a chegada dos netos à família. Um adulto disfarça-se de pai natal, toca á campainha da porta, badala o sino e com o saco cheio de prendas começa a distribuir os presentes. É a delícia dos mais pequeninos. Continuamos a noite em família, em reunião à volta de uma mesa grande cheia de comida ou no quintal conversando e falando muito efusivamente em altos decibéis como é próprio da nossa família.
Pode não ser o Natal mais bonito ou mais elegante, pois não existe propriamente a tradição da ceia de Natal na noite de 24, nem se come peru assado ou recheado, nem tão pouco o bacalhau e as couves, mas é o Natal da minha infância, o Natal que ainda hoje vivemos em casa dos meus pais, todos em familia.

11.12.14






quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A Menina da Manteigaria,

A Menina da Manteigaria,
Durante muitos anos na Manteigaria Zarco só trabalhavam pessoas do sexo masculino. Penso que foi após o 25 de Abril que passou a ter uma senhora no guichet da cobrança. Tinha baixa estatura, cabelo muito curto, super-educada e de uma simpatia contagiante.
Trabalhava no primeiro andar, num compartimento alto forrado a madeira e com um guichet de vidro, que a separava dos clientes. Mais tarde desceu para a cave e ficava sentada ao lado da mesa de trabalho do meu pai. Era o que nos dias de hoje representa, uma secretária. Atendia os telefones, anotava e registava as encomendas, contactava os clientes e fornecedores e ainda dava uma ajudinha na contabilidade. Falava muito, dava uns beijos repenicados quando cumprimentava as pessoas, era uma pessoa muito afectuosa.
Durante muitos anos foi o braço direito do meu pai e julgo que o amoleceu um bocadinho. O meu pai era uma pessoa muito autoritária com os empregados, penso que muitos deles o queriam ver pelas costas, era irascível. Os rapazes que trabalhavam na cave a carregar os caixotes com varias mercadorias eram diariamente humilhados, gritava com eles e ameaçava que no fim do mês iam todos para o olho da rua. Lembro-me particularmente de um rapaz muito alto, gostava de falar comigo, um dia saiu e foi trabalhar para a lota. Sei que se casou, teve filhos, divorciou-se e ouvi dizer que vive algures, no estrangeiro. O rapazito tinha uns esgares um pouco efeminados, mas isso não fazia dele menos homem do que os outros. Só que esse pormenor foi o suficiente para o meu pai implicar com o rapaz. Dos outros que por lá passaram não me recordo bem, pois também não ficavam muito tempo, estavam sempre a entrar e sair caras novas. Apesar da rigidez do meu pai, ele ajudava-os sempre a terem uma vida melhor, a procurarem outros empregos e a emigrarem para outras terras, e era muito comum anos mais tarde passarem por lá para o cumprimentar.
Nunca conheci pessoa mais fiel ao patrão que o meu pai. Por vezes até me parecia demasiado subserviente, nesta sua dedicação ao seu chefe. Deixou cópia numa das minhas irmãs.
Recordo com orgulho as palavras dele, dizia, até para mandar é preciso saber. É preciso saber dar uma ordem, e quando se manda fazer é preciso saber como se faz.
Talvez se ele tivesse sido um bocadinho menos autoritário, talvez ele não tivesse granjeado algumas inimizades. Nem sempre as pessoas sabem compreender que as nossas atitudes são o reflexo da vida que tivemos. O meu pai era quase filho único, tinha um irmão, que havia emigrado para o Brasil e ele ficou sozinho com a responsabilidade da minha bisavó, da avó e do avô. Quer dizer, lá bem no fundo essa responsabilidade passou a ser da minha mãe, ela é que cuidou das duas idosas, isto porque o meu avô morreu cedo, e dele, as lembranças que retenho são nulas.
O meu pai não teve uma vida fácil, foi sempre um homem de muita luta e de muito trabalho, sempre preocupado em não faltar com nada em casa, mas mesmo assim, e com o pouco que tinha soube aproveitar e viver na companhia da família e nas reuniões que organizava com os amigos ao sábado á tarde. A minha mãe pelo contrário, sempre nas suas lamentações acabava por muito raramente fazer o que queria ou o que prometia à sua consciência que ia fazer. Hoje sobra-lhe tempo, mas infelizmente não tem a saúde necessária.
A Manteigaria Zarco era uma mercearia fina, aquilo que hoje se designa de “loja gourmet”, tinha produtos importados, diferentes e muito bons, vendia caju, amêndoas, avelãs, nozes, figos e tâmaras, especiarias exóticas, custard inglesa, salmão em lata, bacalhau, café, queijos, azeitonas, marmelada, bacon, presunto e fiambre, também vendia chocolate em pó, e tabletes, uma panóplia de rebuçados, caramelos e bombons de recheio. Tinha uns grandes frascos de vidro com vários compartimentos, onde os empregados metiam as mãos para retirar os bombons e vender a peso. As coisas eram quase todas vendidas a peso, metidas em sacos de papel branquinhos e atados com um cordel muito fininho, as tâmaras o fiambre e o queijo eram embrulhados manualmente em folhas de papel vegetal.
Há bem pouco tempo encontrei no supermercado a menina da manteigaria, continua igual a si própria, para que saibam, a menina é uma senhora com mais de 70 anos, casada, tem um único filho, que é o seu “ai jesus”, falamos, conversamos sobre o pai, a mãe, as manas, os meus filhos, as netas e o neto dela.
A Manteigaria era um ponto de passagem numa das ruas mais centrais e comerciais do Funchal, a Rua Dr. Fernão de Ornelas, era o ponto de encontro de quem vinha ao Funchal às compras, dos familiares e conhecidos do meu pai e da minha família que não viviam no Funchal e que quando vinham à cidade, passavam por lá e pediam para guardar uns sacos, e umas compras, aliviando assim o peso de percorrer as ruas da cidade para ir ao médico, ao banco, ou à caixa de previdência. Era também o local de procura para quem tinha chegado do estrangeiro e quisesse entrar em contacto com a minha família. À conta destas visitas inesperadas, muitas vezes o meu pai na hora do almoço não chegava a casa sozinho, obrigando a minha mãe a por mais um prato à mesa.
Hoje no lugar da Manteigaria Zarco, já foi uma loja do Alberto Oculista e agora é uma loja de uma cadeia de franschising de roupa interior.
Sinto que pouco ou nada permanece para além das nossas memórias, tudo muda, tudo se transforma, tudo se altera em prol de um mundo moderno, de compras num constante atropelo de um qualquer supermercado de uma superfície comercial, desprovidas da cortesia do empregado de balcão e de um atendimento personalizado.

03.12.2014

Uma questão de atitude.

Uma questão de atitude. Iniciamos o percurso com um vento forte e frio, um pouco desagradável. Levamos com terra e poeira como se esti...