quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A Menina da Manteigaria,

A Menina da Manteigaria,
Durante muitos anos na Manteigaria Zarco só trabalhavam pessoas do sexo masculino. Penso que foi após o 25 de Abril que passou a ter uma senhora no guichet da cobrança. Tinha baixa estatura, cabelo muito curto, super-educada e de uma simpatia contagiante.
Trabalhava no primeiro andar, num compartimento alto forrado a madeira e com um guichet de vidro, que a separava dos clientes. Mais tarde desceu para a cave e ficava sentada ao lado da mesa de trabalho do meu pai. Era o que nos dias de hoje representa, uma secretária. Atendia os telefones, anotava e registava as encomendas, contactava os clientes e fornecedores e ainda dava uma ajudinha na contabilidade. Falava muito, dava uns beijos repenicados quando cumprimentava as pessoas, era uma pessoa muito afectuosa.
Durante muitos anos foi o braço direito do meu pai e julgo que o amoleceu um bocadinho. O meu pai era uma pessoa muito autoritária com os empregados, penso que muitos deles o queriam ver pelas costas, era irascível. Os rapazes que trabalhavam na cave a carregar os caixotes com varias mercadorias eram diariamente humilhados, gritava com eles e ameaçava que no fim do mês iam todos para o olho da rua. Lembro-me particularmente de um rapaz muito alto, gostava de falar comigo, um dia saiu e foi trabalhar para a lota. Sei que se casou, teve filhos, divorciou-se e ouvi dizer que vive algures, no estrangeiro. O rapazito tinha uns esgares um pouco efeminados, mas isso não fazia dele menos homem do que os outros. Só que esse pormenor foi o suficiente para o meu pai implicar com o rapaz. Dos outros que por lá passaram não me recordo bem, pois também não ficavam muito tempo, estavam sempre a entrar e sair caras novas. Apesar da rigidez do meu pai, ele ajudava-os sempre a terem uma vida melhor, a procurarem outros empregos e a emigrarem para outras terras, e era muito comum anos mais tarde passarem por lá para o cumprimentar.
Nunca conheci pessoa mais fiel ao patrão que o meu pai. Por vezes até me parecia demasiado subserviente, nesta sua dedicação ao seu chefe. Deixou cópia numa das minhas irmãs.
Recordo com orgulho as palavras dele, dizia, até para mandar é preciso saber. É preciso saber dar uma ordem, e quando se manda fazer é preciso saber como se faz.
Talvez se ele tivesse sido um bocadinho menos autoritário, talvez ele não tivesse granjeado algumas inimizades. Nem sempre as pessoas sabem compreender que as nossas atitudes são o reflexo da vida que tivemos. O meu pai era quase filho único, tinha um irmão, que havia emigrado para o Brasil e ele ficou sozinho com a responsabilidade da minha bisavó, da avó e do avô. Quer dizer, lá bem no fundo essa responsabilidade passou a ser da minha mãe, ela é que cuidou das duas idosas, isto porque o meu avô morreu cedo, e dele, as lembranças que retenho são nulas.
O meu pai não teve uma vida fácil, foi sempre um homem de muita luta e de muito trabalho, sempre preocupado em não faltar com nada em casa, mas mesmo assim, e com o pouco que tinha soube aproveitar e viver na companhia da família e nas reuniões que organizava com os amigos ao sábado á tarde. A minha mãe pelo contrário, sempre nas suas lamentações acabava por muito raramente fazer o que queria ou o que prometia à sua consciência que ia fazer. Hoje sobra-lhe tempo, mas infelizmente não tem a saúde necessária.
A Manteigaria Zarco era uma mercearia fina, aquilo que hoje se designa de “loja gourmet”, tinha produtos importados, diferentes e muito bons, vendia caju, amêndoas, avelãs, nozes, figos e tâmaras, especiarias exóticas, custard inglesa, salmão em lata, bacalhau, café, queijos, azeitonas, marmelada, bacon, presunto e fiambre, também vendia chocolate em pó, e tabletes, uma panóplia de rebuçados, caramelos e bombons de recheio. Tinha uns grandes frascos de vidro com vários compartimentos, onde os empregados metiam as mãos para retirar os bombons e vender a peso. As coisas eram quase todas vendidas a peso, metidas em sacos de papel branquinhos e atados com um cordel muito fininho, as tâmaras o fiambre e o queijo eram embrulhados manualmente em folhas de papel vegetal.
Há bem pouco tempo encontrei no supermercado a menina da manteigaria, continua igual a si própria, para que saibam, a menina é uma senhora com mais de 70 anos, casada, tem um único filho, que é o seu “ai jesus”, falamos, conversamos sobre o pai, a mãe, as manas, os meus filhos, as netas e o neto dela.
A Manteigaria era um ponto de passagem numa das ruas mais centrais e comerciais do Funchal, a Rua Dr. Fernão de Ornelas, era o ponto de encontro de quem vinha ao Funchal às compras, dos familiares e conhecidos do meu pai e da minha família que não viviam no Funchal e que quando vinham à cidade, passavam por lá e pediam para guardar uns sacos, e umas compras, aliviando assim o peso de percorrer as ruas da cidade para ir ao médico, ao banco, ou à caixa de previdência. Era também o local de procura para quem tinha chegado do estrangeiro e quisesse entrar em contacto com a minha família. À conta destas visitas inesperadas, muitas vezes o meu pai na hora do almoço não chegava a casa sozinho, obrigando a minha mãe a por mais um prato à mesa.
Hoje no lugar da Manteigaria Zarco, já foi uma loja do Alberto Oculista e agora é uma loja de uma cadeia de franschising de roupa interior.
Sinto que pouco ou nada permanece para além das nossas memórias, tudo muda, tudo se transforma, tudo se altera em prol de um mundo moderno, de compras num constante atropelo de um qualquer supermercado de uma superfície comercial, desprovidas da cortesia do empregado de balcão e de um atendimento personalizado.

03.12.2014

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