Natal em casa,
A minha mãe era uma pessoa
atrasada por natureza. Tive sempre a sensação que ela vivia a pensar que o
tempo lhe ia render mais do que efetivamente as 24 horas que tinha um dia.
Embora de ano para ano tentasse programar as coisas a longo tempo, era inevitável,
chegávamos à véspera de Natal e ainda havia tanta coisa para fazer. Era uma
mulher muito perfeccionista, tudo tinha de ser bem feito, como ela queria, como
ela pretendia, sob o seu olhar atento e perscrutador.
A minha mãe não era uma pessoa de
muitas conversas, era tímida, falava pouco, observava muito, tinha até um ar
altivo, que para quem não a conhecesse bem julgava tratar-se de uma pessoa arrogante.
Era uma mulher muito bonita, elegante, discreta, de bom gosto, algo requintada,
uma pessoa muito bem formada.
Nunca trabalhou fora, era
doméstica de profissão e mãe a tempo inteiro, mas suponho que tinha uma alergia
a relógios e a controlar o tempo.
Os preparativos para o Natal
poderiam começar com a antecedência de um mês, no entanto nunca as coisas estavam
prontas atempadamente.
Eu às vezes até a compreendo,
ainda hoje, não gosto destes dias de antecedência, não gosto daquelas limpezas
profundas, dos afazeres, das azáfamas da época, das únicas coisas que faço com
prazer nesta época é cozinhar, por a mesa, fazer jarras, e enfeitar a casa.
A campainha da casa não parava de
tocar nos dias da festa, eram prendas que vinham entregar ao meu pai, dos
amigos do Sino, da firma Martins e Rebelo, da Ilma. dos compadres (pelo menos
6), da Farmácia, dos afilhados, da loja onde ele comprava os fatos e as
camisas, etc. Eu gostava de ver aqueles embrulhos de papel colorido, com renas,
pais natais, bolas, arvores, flores, anjos e estrelas.
A véspera de Natal era sempre o
dia mais crítico, o meu pai chegava a casa mais cedo, sempre muito bem-disposto,
entrava a cantar, tomava banho e colocava discos de vinil com músicas de Natal,
recordo-me particularmente de ouvi-lo cantar “silent night, noite feliz e jingle bells”. Só o ouvi a cantar no
dia 24 de Dezembro.
A minha mãe nos seus afazeres,
atrasada, atrapalhadíssima, cansada e de mau humor, não estava para muitas
folias, enquanto ele, já preparado para querer ir para a missa do galo, ela, apenas
desejava descansar.
A cera já estava dada pela casa
toda, cheirava bem, cheirava a alfazema, mas ainda faltava puxar o lustro com a
máquina, colocar os vasos de flores e plantas dentro de casa, escolher os
naperons de bordado madeira, fazer as jarras, e ajeitar mais uma coisa ou
outra.
Havia ainda os preparativos da
cozinha, o meu pai exigia canja de galinha e sandes da mesma para comermos à
chegada da missa do galo. A carne de vinha de alhos já estava no frigorífico
bem preparada para o dia de Natal.
O pinheiro e a lapinha já estavam
feitos, pela minha irmã mais velha, também sempre tudo à última da hora, mas as
searinhas, o trigo tinha sido posto nesse dia ou no anterior, por isso elas só
deveriam aparecer bem depois do Natal.
A minha mãe incomodava-se com os
telefonemas, tiravam-lhe tempo, estava sempre a interromper o que estava a fazer
para ir atender o telefone. Lá em casa era hábito o telefone tocar durante
muito tempo até que alguém atendesse, o que sendo curioso também acontece na
minha própria casa.
Telefonavam os amigos que tinham
emigrado para a França, para a América, para a Venezuela, mais os que estavam
no Continente. O meu pai gostava de falar com todos esses amigos, falava muito
alto, como se estivesse mesmo, mesmo, do outro lado do mundo.
Tudo sempre até á última a casa
ficava perfeita, fresca, cheirosa e bem arrumada, mas o meu pai zangava-se
sempre com a minha mãe no dia 24 de Dezembro e acabávamos por ir para a missa
do galo sem a minha mãe. Não tenho muita memória de ela nos acompanhar. Íamos
sempre à Igreja da Sé, o meu pai gostava de chegar a horas, entravamos pela
porta traseira, ficávamos ao lado da sacristia e eu acabava sempre por me
sentar numas escadas que ladeavam a porta de trás. O meu pai gostava da missa
da Sé, porque era celebrada pelo bispo e ele falava também outras línguas, o
inglês, o francês o alemão o espanhol e o italiano. Cantavam o Gloria In Excelsis Deo e Glorias e Aleluia.
Penso que na cabeça do meu pai, isto era muito chique. Encontrava também os
meus amigos, que apesar de entrarem na igreja, não assistiam à missa, vinham
depois para a rua, largar bombas, fumar, beber e galhofar. E eu, que tinha
ordem para não sair da igreja ficava ali a roer-me de inveja, desejando ir lá
para fora e juntar-me aos outros. Contudo, sabia escolher bem o meu ponto
estratégico, ali sentada nas escadas via todos os que iam entrando e saindo da
igreja, digamos acabava por ficar um nadinha consolada.
Terminada a missa regressávamos a
casa para cearmos a canjinha e as sandes de galinha. Já cansada não ia para a
cama sem antes deixar o meu sapinho junto à árvore de Natal. Curiosa e com
dificuldade em adormecer, vinha silenciosamente escada abaixo, pé entre pé,
espreitar a árvore e os presentes.
O acordar do dia 25 era muito
original em minha casa, diria eu, único, a minha mãe acordava-nos com um quebra jejum. Ia ao nosso quarto com um
tabuleiro onde continha, um copinho de genebra ou de licor de tangerina, uma
fatia de bolo de laranja, broas de mel, bolo de mel, laranja e tangerina.
Sentava-se a beira da cama para nos desejar um bom natal e só depois de
comermos é que vínhamos para baixo abrir as prendas. Nunca havia muitas, é
certo, mas as que havia eram
mesmo as que eu esperava.
O pequeno-almoço era tardio, como
a tradição imponha a carne de vinha de alhos, com as fatiotas e o café preto, o
almoço pelas 15 da tarde era a galinha ou a carne assada. Havia sempre uma
sobremesa deliciosa, que era o pudim de pão e suspiros, o pudim de bolo com
custard à inglesa e o pudim de “veludo” (de ovos).
À noite voltávamos a colocar na
mesa o frango a carne assada, a carne de vinha de alhos e as fatiotas.
Quando nós eramos pequenos os
presentes abriam-se no dia 25 de manhã, hoje todos têm as suas famílias
nucleares e só lá vão a casa no dia 25 ao jantar, os presentes abrem-se depois
com um ritual que foi instituído após a chegada dos netos à família. Um adulto
disfarça-se de pai natal, toca á campainha da porta, badala o sino e com o saco
cheio de prendas começa a distribuir os presentes. É a delícia dos mais pequeninos.
Continuamos a noite em família, em reunião à volta de uma mesa grande cheia de
comida ou no quintal conversando e falando muito efusivamente em altos decibéis
como é próprio da nossa família.
Pode não ser o Natal mais bonito
ou mais elegante, pois não existe propriamente a tradição da ceia de Natal na
noite de 24, nem se come peru assado ou recheado, nem tão pouco o bacalhau e as
couves, mas é o Natal da minha infância, o Natal que ainda hoje vivemos em casa
dos meus pais, todos em familia.
11.12.14
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