quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Natal em casa,

Natal em casa, 
A minha mãe era uma pessoa atrasada por natureza. Tive sempre a sensação que ela vivia a pensar que o tempo lhe ia render mais do que efetivamente as 24 horas que tinha um dia. Embora de ano para ano tentasse programar as coisas a longo tempo, era inevitável, chegávamos à véspera de Natal e ainda havia tanta coisa para fazer. Era uma mulher muito perfeccionista, tudo tinha de ser bem feito, como ela queria, como ela pretendia, sob o seu olhar atento e perscrutador.
A minha mãe não era uma pessoa de muitas conversas, era tímida, falava pouco, observava muito, tinha até um ar altivo, que para quem não a conhecesse bem julgava tratar-se de uma pessoa arrogante. Era uma mulher muito bonita, elegante, discreta, de bom gosto, algo requintada, uma pessoa muito bem formada.
Nunca trabalhou fora, era doméstica de profissão e mãe a tempo inteiro, mas suponho que tinha uma alergia a relógios e a controlar o tempo.
Os preparativos para o Natal poderiam começar com a antecedência de um mês, no entanto nunca as coisas estavam prontas atempadamente.
Eu às vezes até a compreendo, ainda hoje, não gosto destes dias de antecedência, não gosto daquelas limpezas profundas, dos afazeres, das azáfamas da época, das únicas coisas que faço com prazer nesta época é cozinhar, por a mesa, fazer jarras, e enfeitar a casa.
A campainha da casa não parava de tocar nos dias da festa, eram prendas que vinham entregar ao meu pai, dos amigos do Sino, da firma Martins e Rebelo, da Ilma. dos compadres (pelo menos 6), da Farmácia, dos afilhados, da loja onde ele comprava os fatos e as camisas, etc. Eu gostava de ver aqueles embrulhos de papel colorido, com renas, pais natais, bolas, arvores, flores, anjos e estrelas.
A véspera de Natal era sempre o dia mais crítico, o meu pai chegava a casa mais cedo, sempre muito bem-disposto, entrava a cantar, tomava banho e colocava discos de vinil com músicas de Natal, recordo-me particularmente de ouvi-lo cantar “silent night, noite feliz e jingle bells”. Só o ouvi a cantar no dia 24 de Dezembro.
A minha mãe nos seus afazeres, atrasada, atrapalhadíssima, cansada e de mau humor, não estava para muitas folias, enquanto ele, já preparado para querer ir para a missa do galo, ela, apenas desejava descansar.
A cera já estava dada pela casa toda, cheirava bem, cheirava a alfazema, mas ainda faltava puxar o lustro com a máquina, colocar os vasos de flores e plantas dentro de casa, escolher os naperons de bordado madeira, fazer as jarras, e ajeitar mais uma coisa ou outra.
Havia ainda os preparativos da cozinha, o meu pai exigia canja de galinha e sandes da mesma para comermos à chegada da missa do galo. A carne de vinha de alhos já estava no frigorífico bem preparada para o dia de Natal.
O pinheiro e a lapinha já estavam feitos, pela minha irmã mais velha, também sempre tudo à última da hora, mas as searinhas, o trigo tinha sido posto nesse dia ou no anterior, por isso elas só deveriam aparecer bem depois do Natal.
A minha mãe incomodava-se com os telefonemas, tiravam-lhe tempo, estava sempre a interromper o que estava a fazer para ir atender o telefone. Lá em casa era hábito o telefone tocar durante muito tempo até que alguém atendesse, o que sendo curioso também acontece na minha própria casa.
Telefonavam os amigos que tinham emigrado para a França, para a América, para a Venezuela, mais os que estavam no Continente. O meu pai gostava de falar com todos esses amigos, falava muito alto, como se estivesse mesmo, mesmo, do outro lado do mundo.
Tudo sempre até á última a casa ficava perfeita, fresca, cheirosa e bem arrumada, mas o meu pai zangava-se sempre com a minha mãe no dia 24 de Dezembro e acabávamos por ir para a missa do galo sem a minha mãe. Não tenho muita memória de ela nos acompanhar. Íamos sempre à Igreja da Sé, o meu pai gostava de chegar a horas, entravamos pela porta traseira, ficávamos ao lado da sacristia e eu acabava sempre por me sentar numas escadas que ladeavam a porta de trás. O meu pai gostava da missa da Sé, porque era celebrada pelo bispo e ele falava também outras línguas, o inglês, o francês o alemão o espanhol e o italiano. Cantavam o Gloria In Excelsis Deo e Glorias e Aleluia. Penso que na cabeça do meu pai, isto era muito chique. Encontrava também os meus amigos, que apesar de entrarem na igreja, não assistiam à missa, vinham depois para a rua, largar bombas, fumar, beber e galhofar. E eu, que tinha ordem para não sair da igreja ficava ali a roer-me de inveja, desejando ir lá para fora e juntar-me aos outros. Contudo, sabia escolher bem o meu ponto estratégico, ali sentada nas escadas via todos os que iam entrando e saindo da igreja, digamos acabava por ficar um nadinha consolada.
Terminada a missa regressávamos a casa para cearmos a canjinha e as sandes de galinha. Já cansada não ia para a cama sem antes deixar o meu sapinho junto à árvore de Natal. Curiosa e com dificuldade em adormecer, vinha silenciosamente escada abaixo, pé entre pé, espreitar a árvore e os presentes.
O acordar do dia 25 era muito original em minha casa, diria eu, único, a minha mãe acordava-nos com um quebra jejum. Ia ao nosso quarto com um tabuleiro onde continha, um copinho de genebra ou de licor de tangerina, uma fatia de bolo de laranja, broas de mel, bolo de mel, laranja e tangerina. Sentava-se a beira da cama para nos desejar um bom natal e só depois de comermos é que vínhamos para baixo abrir as prendas. Nunca havia muitas, é certo, mas as que havia eram mesmo as que eu esperava.
O pequeno-almoço era tardio, como a tradição imponha a carne de vinha de alhos, com as fatiotas e o café preto, o almoço pelas 15 da tarde era a galinha ou a carne assada. Havia sempre uma sobremesa deliciosa, que era o pudim de pão e suspiros, o pudim de bolo com custard à inglesa e o pudim de “veludo” (de ovos).
À noite voltávamos a colocar na mesa o frango a carne assada, a carne de vinha de alhos e as fatiotas.
Quando nós eramos pequenos os presentes abriam-se no dia 25 de manhã, hoje todos têm as suas famílias nucleares e só lá vão a casa no dia 25 ao jantar, os presentes abrem-se depois com um ritual que foi instituído após a chegada dos netos à família. Um adulto disfarça-se de pai natal, toca á campainha da porta, badala o sino e com o saco cheio de prendas começa a distribuir os presentes. É a delícia dos mais pequeninos. Continuamos a noite em família, em reunião à volta de uma mesa grande cheia de comida ou no quintal conversando e falando muito efusivamente em altos decibéis como é próprio da nossa família.
Pode não ser o Natal mais bonito ou mais elegante, pois não existe propriamente a tradição da ceia de Natal na noite de 24, nem se come peru assado ou recheado, nem tão pouco o bacalhau e as couves, mas é o Natal da minha infância, o Natal que ainda hoje vivemos em casa dos meus pais, todos em familia.

11.12.14






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