terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A primeira oitava,

A primeira oitava,
O 26 de Dezembro é tolerância de ponto, assinalado como a primeira oitava, e sempre foi o dia de visitar a família, íamos invariavelmente a Santa Cruz.
Primeiro era a família do meu pai, muito pequena, resumia-se apenas a uma casa, uma tia que vivia no Sitio do Cano, mesmo por detrás do Aeroporto. Era uma casa, que durante muitos anos sempre me pareceu em obras, as paredes exteriores em cimento, só depois de já bem crescidinha, a vi caiada de branco. Faziam uns dentinhos que o meu pai gostava, carne de vinha de alhos, galinha e um bom pão de casa.
O meu pai levava para oferecer, o queijo, a manteiga, as broas e os bolos de mel. Era assim para todas as casas das tias, primos e primas.
Eu queria que naquela primeira casa, a visita fosse bem rápida, para subirmos ao Janeiro e ir às outras casas, pois a convivência com as outras primas (os) era muito maior.
No Janeiro íamos entrando de casa em casa, por vezes subíamos por cima pelo Sítio do Valente e fazíamos a visita no inverso, pela descida.
O ritual era sempre o mesmo, ver o presépio, provar o vinho, um dentinho, falar com os familiares sobre os terrenos, a família emigrada, os filhos que estavam a crescer e a vida que não para e a vida que é dura.
Tinha um primo que reservava sempre um quarto para a “lapinha,” com tudo o que ela tinha direito, aldeia, igreja, banda de música, cabrinhas, agua, musgo, luzes e pós brilhantes espalhados pelo papel pintado com viochene.
Nas outras duas casas de baixo era diferente, iam-se adaptando aos tempos modernos, sem se perder as tradições faziam-se inovações. Achava interessante os enfeites que se pendurava na parede e nas portas dos quartos, uns laços, com folhas de azevinhos e outros ramos verdes, ora ornamentados com uns sinos, às vezes umas bolas às cores, umas velas ou ainda quadrados pequeninos simbolizando presentinhos de natal. Era tudo feito com o máximo cuidado, quer na conjugação das cores, com os móveis e com os espaços diferentes, fosse na sala, no corredor ou na cozinha.
O presépio era sempre mais pequeno, mas muito delicado, um bom menino jesus, com vestido de linho e bordado madeira, utilizavam pedras, rochas e galhos para imitação da gruta, simbolizando o nascimento, a vaca e o boi. Tudo servia para demonstrar a simplicidade e a modéstia no nascimento de Jesus.
As casas estavam imaculadamente limpas. Na altura da Festa, caiavam-se as casas, pintava-se a cozinha, a mesa, as cadeiras e os armários. Utilizava-se loiça e toalhas novas, os bordados e os naperons eram primorosamente engomados. Havia sempre qualquer coisa de novo, umas cortinas, um tapete, um candeeiro, uma mesa, um objecto diferente.
Os convites para o jantar eram disputados entre as duas casas, “jantas aqui, não, ali em baixo, este ano não jantamos, vamos mais cedo”, era sempre difícil acertar com o sítio certo onde íamos jantar. Não queríamos ferir susceptibilidades mas quase sempre comíamos na casa do meio. Tinha mais gente, mais primas, mais mulheres e era maior.
Jantávamos sempre muito bem, era a canja, a carne assada feita pelo Tio, a galinha a carne de vinha de alhos, o pão, o vinho e uma panóplia de sobremesas. As primas, aqui davam asas á imaginação e á criatividade, faziam sempre umas coisas diferentes. Recordo um bolo de caramelo recheado com nozes, pudim de maracujá, de ananás, outro de frutas muito picadinhas, e bolo de bolacha com creme de café. Gostava também do café de saco e já açucarado que se tomava a seguir ao jantar.
Depois do jantar ou antes no dia de Natal à noite, chegava o meu primo de Lisboa, passava a época até o final de ano. A sua presença aquecia o espaço, o sorriso dele enchia a alma, trazia bolachas ou caramelos para as tias. Às vezes a Tia do Curaçau também lá estava para passar o Natal em Santa Cruz. Hoje, a única filha dela fala em um dia vir cá passar o Natal. Ando sempre a insistir para que o faça o mais rapidamente possível, enquanto as casas existem, enquanto temos a família, enquanto os laços ainda são estreitos.
As primas ainda colocavam na mesa uns aperitivos deliciosos, umas azeitonas previamente preparadas com o alho, orégãos e pimentos, amêndoas torradas e salgadas, broas e outras iguarias. Não esqueço os licores, o meu preferido, o de tangerina, mas também havia um de caramelo muito bom.
Ainda íamos à casa de baixo, à última, nessa a minha mãe levava sempre uns presentes diferentes, era uma camisa para o primo, um pijama para a prima, umas meias ao tio. Eu sempre percebi porque ela os mimava de uma forma diferente, tinham perdido a mãe, e aquilo era uma atenção especial. Éramos sempre muitos, a família quando se reunia, não parava de comer, de falar, de falar sempre muito alto e o regresso era sempre muito tardio.
O meu pai jogava à bisca com os tios e os primos e no final era sempre um baralho de cartas rasgado, aquilo era à séria. Eu nunca participei nos jogos, sempre tive mau perder, preferia ficar na conversa com as primas ou a ouvir o meu tio a contar anedotas. Todos riam com vontade, ele tinha muito jeito e sabia sempre uma nova. O tio ainda é vivo, já passou dos 90 anos, solteiro, um homem muito alto, que esteve emigrado na Rodésia, passou também pela África do Sul. Um homem com vivências interessantes, único homem entre cinco mulheres. Foi dos primeiros do sítio a ter carro e por isso era assediado a fazer de táxi e a levar pessoas de um lado para outro. Era muito cúmplice com a minha mãe, e muitas vezes quando vinha á cidade passava sempre pela minha casa. Nessas visitas, onde se sentava na mesa da cozinha a tomar um café, conversava e deixava a minha mãe satisfeita. Lembro-me de ele dizer “o que fazes mulher, que não comes”, “teu marido põe-te à fome”, a minha mãe sempre foi muito magra, sempre foi uma mulher de pouco apetite e não comia muito.
À noite ainda aparecia por lá um grupo de cantares da época, vizinhos que vinham com o rajão, a braguinha o acordeão e a gaita, tocar e cantar, desafiavam a minha mãe para cantar o fado, mas com o meu pai lá presente era coisa que não chegava a acontecer.
Neste dia via a minha mãe feliz, alias sempre que a minha mãe estava em santa Cruz, reunida com as irmãs, as sobrinhas e no fundo com toda a família dela, a minha mãe era feliz. Era ali o espaço dela, que foi teimosamente roubado pelo meu pai quando se casou e vieram viver para o Funchal.
Após a morte do meu tio, já lá vão pelo menos dois anos que deixamos de cumprir este ritual, por uma maneira ou por outra deixamos de lá aparecer. Lamento muito perderem-se estes hábitos, mas à medida que uns vão nos deixando, outros vão chegando, tudo se vai alterando, e quando damos conta quase acabamos por perder as nossas raízes. A Família vai ficando mais circunscrita à casa, aos filhos, aos netos, aos sobrinhos netos, e os outros ramos vão se apagando à mercê do tempo.

30.12.14

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