Revolução e
proibições de casa,
Lá em casa não
se falava muito em política, o meu pai tinha as suas orientações bem definidas,
e não permitia dar muita vazão a espaços de tertúlia sobre o estado do país ou
do regime em que se vivia.
Sei apenas que
tive um avô, curiosamente do lado paterno, que era um individuo extremamente
honesto e defensor dos direitos humanos.
Sei que chegava
a nossa casa, escutava bem baixinho (porque era proibido) notícias que alguns
portugueses exilados no estrangeiro, transmitiam em programas de rádio em onda
curta, com o fim de sensibilizar os ouvintes para combater a ditadura. Sintonizava
as estações de rádio para as emissões a partir de Moscovo e de Argel.
Era um homem
culto e interessado pelo mundo, julgo que, com uma atitude perante a vida mais
além do que a rotina de cozinheiro em casa de uma família inglesa lhe poderia
permitir. Lamentavelmente não cheguei a privar com ele, morreu precocemente de
cancro no pulmão.
O meu pai ia
acompanhando as notícias pela TV, pela comunicação e por uns tantos amigos, que
viviam em Lisboa e de vez em quando regressavam à região. A preocupação dele
era porque tinha, na altura, uma filha a estudar em Lisboa.
Para ele o
ambiente de revolução, rebeldia, não lhe transmitia a segurança que ele
pretendia. Naqueles dias de Abril, proibiu a minha irmã de ir para a faculdade,
“nada de andar pelas ruas”, “nada de participar em manifestações, nem de opinar
contra o regime”. Ia sabendo novidades também através de um sobrinho dele, mais
velho que a minha irmã, já alguns anos instalado na capital. A norma era,
“controla-me essa rapariga”.
E no dia da
Revolução, só me lembro do meu pai ter-me enviado para Santa Cruz para passar o
fim de semana em casa das tias. O 25 de Abril foi um dia marcante para mim,
tinha onze anos, tinha entrado na pré-adolescência e queria assistir a tudo
pela televisão.
As tropas, a
revolução, o povo na rua, os cravos, os tanques na avenida da liberdade, o
Quartel do Carmo, as imagens eram eloquentes, e as musicas, “Grândola Vila
Morena”, “E depois do Adeus”, Vejam bem “, “Eles comem tudo”.
Passei a ouvir
meio clandestinamente, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Pedro Barroso, e a ler
poemas de Ary dos Santos, Adriano Correia de Oliveira e António Gedeão. Todos
estes cantores, poetas e escritores de intervenção causava-me um fascínio
indescritível, talvez por ser o proibido, talvez por o meu pai não permitir
ouvir este tipo de música em casa, sei lá, ainda hoje não fico indiferente a
nenhuma destas canções.
Lamento não ter
apanhado a Revolução numa fase mais crescida, pois com 11 anos, ainda andava
muito concentrada em mim, a saber se ia crescer mais, se o cabelo ia ficar
louro, se teria roupa nova para levar no dia seguinte à escola, ou mais quanto
tempo teria de esperar para ter um namorado e sair à noite, aprender a dançar,
ir para a praia e ficar morena com sardas a salpicar pela cara, ter tempo para
ver as séries da TV e andar de bicicleta.
Mais tarde e
ainda nas proibições da casa, e do país, o meu irmão apareceu com discos que se
fartaram de tocar no nosso gira discos, o “Je taime moi non plus”, o Emanuelle,
o álbum do Jesus Cristo Superstar e o Bolero de Ravel (que o meu pai detestava).
O meu irmão como era mais velho e já tinha os seus amigos, fechava a porta da sala
e às escuras fazia lá a sua sessão de discoteca, criava cenários, e claro,
proibia-me de lá entrar.
Era nessas
alturas que eu sentia vontade de ser mais crescida, os amigos dele eram todos
giros, mas eu não passava de uma miúda, irrequieta e ainda por cima metediça.
Não passava da
porta, mas também não saía do degrau das escadas, mesmo ao lado.
Nada podia ver mas
ouvia tudo.
24-04-15
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