sexta-feira, 24 de abril de 2015

Revolução e proibições de casa,

Revolução e proibições de casa,
Lá em casa não se falava muito em política, o meu pai tinha as suas orientações bem definidas, e não permitia dar muita vazão a espaços de tertúlia sobre o estado do país ou do regime em que se vivia.
Sei apenas que tive um avô, curiosamente do lado paterno, que era um individuo extremamente honesto e defensor dos direitos humanos.
Sei que chegava a nossa casa, escutava bem baixinho (porque era proibido) notícias que alguns portugueses exilados no estrangeiro, transmitiam em programas de rádio em onda curta, com o fim de sensibilizar os ouvintes para combater a ditadura. Sintonizava as estações de rádio para as emissões a partir de Moscovo e de Argel.
Era um homem culto e interessado pelo mundo, julgo que, com uma atitude perante a vida mais além do que a rotina de cozinheiro em casa de uma família inglesa lhe poderia permitir. Lamentavelmente não cheguei a privar com ele, morreu precocemente de cancro no pulmão.
O meu pai ia acompanhando as notícias pela TV, pela comunicação e por uns tantos amigos, que viviam em Lisboa e de vez em quando regressavam à região. A preocupação dele era porque tinha, na altura, uma filha a estudar em Lisboa.
Para ele o ambiente de revolução, rebeldia, não lhe transmitia a segurança que ele pretendia. Naqueles dias de Abril, proibiu a minha irmã de ir para a faculdade, “nada de andar pelas ruas”, “nada de participar em manifestações, nem de opinar contra o regime”. Ia sabendo novidades também através de um sobrinho dele, mais velho que a minha irmã, já alguns anos instalado na capital. A norma era, “controla-me essa rapariga”.
E no dia da Revolução, só me lembro do meu pai ter-me enviado para Santa Cruz para passar o fim de semana em casa das tias. O 25 de Abril foi um dia marcante para mim, tinha onze anos, tinha entrado na pré-adolescência e queria assistir a tudo pela televisão.
As tropas, a revolução, o povo na rua, os cravos, os tanques na avenida da liberdade, o Quartel do Carmo, as imagens eram eloquentes, e as musicas, “Grândola Vila Morena”, “E depois do Adeus”, Vejam bem “, “Eles comem tudo”.
Passei a ouvir meio clandestinamente, Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Pedro Barroso, e a ler poemas de Ary dos Santos, Adriano Correia de Oliveira e António Gedeão. Todos estes cantores, poetas e escritores de intervenção causava-me um fascínio indescritível, talvez por ser o proibido, talvez por o meu pai não permitir ouvir este tipo de música em casa, sei lá, ainda hoje não fico indiferente a nenhuma destas canções.
Lamento não ter apanhado a Revolução numa fase mais crescida, pois com 11 anos, ainda andava muito concentrada em mim, a saber se ia crescer mais, se o cabelo ia ficar louro, se teria roupa nova para levar no dia seguinte à escola, ou mais quanto tempo teria de esperar para ter um namorado e sair à noite, aprender a dançar, ir para a praia e ficar morena com sardas a salpicar pela cara, ter tempo para ver as séries da TV e andar de bicicleta.
Mais tarde e ainda nas proibições da casa, e do país, o meu irmão apareceu com discos que se fartaram de tocar no nosso gira discos, o “Je taime moi non plus”, o Emanuelle, o álbum do Jesus Cristo Superstar e o Bolero de Ravel (que o meu pai detestava). O meu irmão como era mais velho e já tinha os seus amigos, fechava a porta da sala e às escuras fazia lá a sua sessão de discoteca, criava cenários, e claro, proibia-me de lá entrar.
Era nessas alturas que eu sentia vontade de ser mais crescida, os amigos dele eram todos giros, mas eu não passava de uma miúda, irrequieta e ainda por cima metediça.
Não passava da porta, mas também não saía do degrau das escadas, mesmo ao lado.
Nada podia ver mas ouvia tudo.

24-04-15

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