terça-feira, 14 de abril de 2015

Descendo e subindo a rua,

Descendo e subindo a rua,
Desci e subi a rua a pé durante uma série de anos. A rua ficava entre a Rua da Torrinha (rua que tinha casas grandes e algumas quintas) e a Rua do Til, (rua muito grande e com bastante movimento de viaturas). Eu vivia na rua da Carne Azeda, feia, estreita, escura, velha, mal cheirosa e pouco iluminada. Era uma rua de casas velhas, antigas, hoje mantém-se quase todas, algumas remodeladas, outras deram origem a prédios de apartamentos.
As casas eram de gente de trabalho, pessoas humildes, muitas de aluguer. Casas bonitas e grandes nem chegavam a uma mão cheia, pertencentes a famílias com algum poder económico. Logo no início havia uma que atravessava toda a rua até o Torreão, outra com um grande terreno mesmo junto ao Engenho do Winton, a seguir a casa dos meus amigos de  infância onde brincava todos os dias, tão grande que chegava à rua do Til, acima mais umas duas com raiz do chão, primeiro andar e quintal à volta.
A rua não me enchia de orgulho, muito pelo contrário tinha um certo receio de a subir e descer sozinha, sobretudo naqueles dias pequenos e escuros de inverno. Passavam poucas pessoas, muitos velhos, pedintes, e uns homens esquisitos e estranhos que às vezes se escondiam por detrás dos carros. A iluminação pública até há poucos anos era com postes de madeira e candeeiros que iluminavam muito pouco. Tudo isto não me trazia confiança nenhuma, mas subir o lado oposto, o da Rua do Til, o trajecto era mais longo.
Em baixo mesmo no início da minha rua, existia uma fábrica, mais tarde oficina, era um prédio muito grande, alto e de nada valia à estética, ao lado o ribeiro, que acompanhava o engenho do Winton. Era interessante ver a labuta dos homens com os carros apinhados de cana-de-açúcar e o fumo a sair das chaminés. Eu não me lembro, mas as minhas irmãs recordam-se do incêndio no engenho e dizem que o quintal da nossa casa ficou cheio de cinzas e o nosso pai mandou-nos sair para casa de um vizinho mais acima, talvez para ficarmos mais protegidas.
Naquela rua vivia um senhor que tinha um carro grande antigo, tipo táxi, circulava na cidade para transportar turistas, vivia numa casa, igual a mais 4 ou 5, pareciam casas de bairro. A esposa dele e uma cunhada (irmã da mulher) passavam o tempo à janela e quando eu vinha da escola, falavam sempre comigo, perguntavam como estava a mamã e o papá, como iam os estudos, aquela conversa de circunstância.
Havia também um senhor José, de nome, que era carpinteiro, tinha uma loja, onde fazia os seus biscates, mais para cima havia uma mercearia, hoje transformada em bar/tasca. Em criança muitas vezes cheguei a ir à mercearia, comprar coisas de ultima hora, sal, açúcar, farinha, ovos, massa ou arroz.
Sempre foi uma rua com alguma dificuldade para estacionar os carros, hoje a rua tem um sentido só, descendente.
Naquela rua e nas artérias circundantes, Rua do Til e D. João, tínhamos os nossos vizinhos amigos, viviam todos por ali. Eu não tinha muitos, mas o meu irmão tinha um grupo do pior. Fartavam-se de bater à campainha assediando-o para brincadeiras que os comprometiam. Cada um pior que o outro, hoje, ainda considerados “peças de museu inconfundíveis”, irrequietos, rebeldes adolescentes, tiranos e inconsequentes, por vezes nas atitudes que tomavam. Eu não tinha medo deles, enfrentava-os todos, quando batiam á porta, dizia logo que o meu irmão estava a dormir, mas eles faziam-se entender por códigos, assobios, toques e buzinas de motas, etc. Eu dizia que os amigos do meu irmão eram desaconselháveis e que só o levavam para maus caminhos ou melhor, desencaminhavam-no.
Havia também um rapaz que que não largava a campainha da nossa porta, para fazer queixa ao meu pai do meu irmão e dos amigos dele. A bem dizer o rapaz tinha um índice cognitivo muito abaixo do normal e uns trejeitos efeminados, obviamente era motivo de chacota para o grupo. Até o meu pai se ria da situação, claro, sem dar a entender, um dia ouvi-o dizer “o rapaz também se poe a jeito”. Suponho que a figura ainda hoje existe, caricato, vagueava pelas ruas da cidade, implicando com todas as pessoas e exibindo uma verborreia escandalosa, sem mais nem quê. Era cliente assíduo das urgências do Hospital, de todas as igrejas da cidade e dos autocarros que subiam a Rua do Til.
Na travessa do Anselmo havia uma serie de casas em banda, todas iguais, só divergiam na cor das paredes, das portas e das janelas.
Durante muitos anos à frente da minha casa, existiu uma fazenda grande e havia uma entrada do nosso quintal que dava directamente para lá. Quando éramos pequenos íamos brincar, colher anonas e espiar o levadeiro.
Por aquela rua passaram uma série de figuras, que hoje deixaram de circular, o leiteiro, o amola tesouras e o padeiro.
Hoje a rua continua quase exactamente igual, não fosse os técnicos camarários terem asfaltado o caminho que antes era empedrado.

17-04-15

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