Entrar nos 80
Entrar nos 80
anos com a saúde própria que a idade assim exige, reunida com a família nuclear
e alguns amigos é bastante gratificante.
Foi pedida a
nossa presença, mas por motivos pessoais não estamos fisicamente, mas em
espirito nunca a abandonamos.
Ficou órfã de
mãe aos 17 anos de idade.
Guarda grandes
recordações de uma relação muito estreita com a avó paterna, gostava
particularmente de dormir com ela de domingo para 2º Feira. A avó tinha um
talho em Cascais, que encerrava à segunda-feira, por isso ela tinha permissão
de pernoitar naquela casa.
Guarda também
grandes recordações de uma empregada da casa dos pais, que lhe ensinou muito
das lides domésticas e a ajudou a cuidar da mãe, que morreu de cancro.
Hoje sempre que
pode ainda a visita nas Caldas da Rainha.
O pai,
entretanto, um bom marialva, também ajudava no talho, ao que se sabe era um
excelente talhante, mas gostava muito de mulheres. Vestia-se primorosamente,
era um homem alto, uma boa figura, usava camisas de seda natural, sapatos bicudos
pretos e brancos, vestia-se numa casa em Lisboa “Carnaval de Veneza”.
Após a morte da
mãe, o pai que ia tendo os seus relacionamentos casou com uma italiana, daí
nasceu uma filha do casal, meia-irmã dela. O relacionamento das duas irmãs
nunca se desenvolveu nem a relação com a madrasta era possível.
Casou cedo
demais, com o homem da sua vida, o único homem que amou. Casou contra a vontade
da família do marido, na igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa. Assistiram
à cerimónia os padrinhos (um colega do marido e a madrasta), o pai e a sua
madrinha de baptismo.
Foi viver para casa
da madrasta em São João, depois foi para Coimbra, nessa cidade terminou o
marido o curso.
Nessa mesma
cidade nasceram os dois primeiros dos cinco filhos, regressaram a Cascais e
foram viver para casa dos sogros dela, depois para o Chalet Saudade, outra casa
na Rua do Viveiro e por fim ficaram até aos dias de hoje na Vila Manuela à
Avenida de Saboia, Monte Estoril.
O marido
trabalhou em vários hospitais civis de Lisboa, Capuchos, São José, Curry
Cabral, Centro de Saúde de Cascais, era ainda médico dos Bombeiros do Estoril,
da EDP, da Sociedade do Estoril Comboios, e teve um consultório no Monte
Estoril.
Trabalhava
imenso, saía de noite para visita a domicílios, estava sempre disponível para ver
um doente, para confortar, para falar, para dizer uma palavra amiga, para
medicar e passar receituário ou para afagar os cabelos, como ainda me chegou a
fazer.
Ela, apesar de
doméstica, também trabalhava muito em casa, tinha empregada, mas como a família
era grande a azáfama era constante, trabalhava-se muito na cozinha, à volta dos
tachos, com as roupas, em casa, no jardim, e nas limpezas, e arrumações.
Diziam-me um dia
alguém, “os filhos não são o que
queremos, são os que se têm,” assim como são, todos diferentes uns dos
outros, todos com as suas vicissitudes próprias, não são iguais a ninguém, saem
a si próprios, uns com uma personalidade mais vincada e intransigente, outros
mais maleáveis e flexíveis.
Neste percurso
de vida ela conta apenas com quatro dos seus cinco filhos nascidos, perdeu
abruptamente um deles há cerca de 5 anos. A morte do marido e do filho foram as
duas ultima situações mais dolorosas que ela teve de enfrentar.
Mesmo assim a
sua tenacidade e capacidade de renascer é tão grande que foi possível dar a
volta e seguir em frente. O maior atrevimento que teve foi tirar a carta de
condução, comprar um carro e começar a conduzir.
De resto passou
a gerir tudo sozinha, as casas, os inquilinos, os pagamentos e as compras. Enquanto
pode fez as suas viagens, organizadas algumas pela paróquia outras por uma
amiga, faz voluntariado, saí todos os dias, vai á igreja, á missa, tomar chá
com as amigas, tratar de qualquer assunto pessoal. Penso que ainda é isto que a
deixa tão activa. Faz tudo sozinha, pode depender dos outros pontualmente e para
isso pede apoio às amigas mais próximas.
Os filhos muito
raramente estão presentes, cada um no seu espaço, cada um na sua vida, são
muito pouco prestáveis, o contacto além de frágil, é muito pouco afectuoso.
Hoje ela vive
acompanhada por um dos netos, por sinal o meu filho mais velho, que estuda no
Estoril e vive lá em casa. Por lá também já viveram pelo menos 3 dos filhos que
se casaram, embora tivesse sido temporariamente, e ainda lá viveu também durante
uns 5 anos, o neto mais velho.
Recordo-me que
um dia, naqueles momentos de maior tristeza, ela a falar comigo, disse-me “ai filha, eu queria ir para o pé do meu
marido, não estou aqui a fazer nada” e eu respondi-lhe “não diga isso porque ainda é aqui precisa”, e eu que o diga!
A quem nunca teve
uma vida fácil, algum sofrimento, muita lágrima derramada, alguns dissabores,
alguns desentendimentos motivados pela sua forte personalidade e o carácter
acutilante, mas alguém que viveu um grande amor, que disso se pode orgulhar e
recordar, que no íntimo é uma pessoa de sentimentos nobres e que muitas vezes
ingloriamente preserva a família, desejo que os restantes dias sejam mais
serenos, que a sua fé a acompanhe e aqueça a sua alma.
16.01.15
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