sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Entrar nos 80

Entrar nos 80
Entrar nos 80 anos com a saúde própria que a idade assim exige, reunida com a família nuclear e alguns amigos é bastante gratificante.
Foi pedida a nossa presença, mas por motivos pessoais não estamos fisicamente, mas em espirito nunca a abandonamos.
Ficou órfã de mãe aos 17 anos de idade.
Guarda grandes recordações de uma relação muito estreita com a avó paterna, gostava particularmente de dormir com ela de domingo para 2º Feira. A avó tinha um talho em Cascais, que encerrava à segunda-feira, por isso ela tinha permissão de pernoitar naquela casa.
Guarda também grandes recordações de uma empregada da casa dos pais, que lhe ensinou muito das lides domésticas e a ajudou a cuidar da mãe, que morreu de cancro.
Hoje sempre que pode ainda a visita nas Caldas da Rainha.
O pai, entretanto, um bom marialva, também ajudava no talho, ao que se sabe era um excelente talhante, mas gostava muito de mulheres. Vestia-se primorosamente, era um homem alto, uma boa figura, usava camisas de seda natural, sapatos bicudos pretos e brancos, vestia-se numa casa em Lisboa “Carnaval de Veneza”.
Após a morte da mãe, o pai que ia tendo os seus relacionamentos casou com uma italiana, daí nasceu uma filha do casal, meia-irmã dela. O relacionamento das duas irmãs nunca se desenvolveu nem a relação com a madrasta era possível.
Casou cedo demais, com o homem da sua vida, o único homem que amou. Casou contra a vontade da família do marido, na igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa. Assistiram à cerimónia os padrinhos (um colega do marido e a madrasta), o pai e a sua madrinha de baptismo.
Foi viver para casa da madrasta em São João, depois foi para Coimbra, nessa cidade terminou o marido o curso.
Nessa mesma cidade nasceram os dois primeiros dos cinco filhos, regressaram a Cascais e foram viver para casa dos sogros dela, depois para o Chalet Saudade, outra casa na Rua do Viveiro e por fim ficaram até aos dias de hoje na Vila Manuela à Avenida de Saboia, Monte Estoril.
O marido trabalhou em vários hospitais civis de Lisboa, Capuchos, São José, Curry Cabral, Centro de Saúde de Cascais, era ainda médico dos Bombeiros do Estoril, da EDP, da Sociedade do Estoril Comboios, e teve um consultório no Monte Estoril.
Trabalhava imenso, saía de noite para visita a domicílios, estava sempre disponível para ver um doente, para confortar, para falar, para dizer uma palavra amiga, para medicar e passar receituário ou para afagar os cabelos, como ainda me chegou a fazer.
Ela, apesar de doméstica, também trabalhava muito em casa, tinha empregada, mas como a família era grande a azáfama era constante, trabalhava-se muito na cozinha, à volta dos tachos, com as roupas, em casa, no jardim, e nas limpezas, e arrumações.
Diziam-me um dia alguém, “os filhos não são o que queremos, são os que se têm,” assim como são, todos diferentes uns dos outros, todos com as suas vicissitudes próprias, não são iguais a ninguém, saem a si próprios, uns com uma personalidade mais vincada e intransigente, outros mais maleáveis e flexíveis.
Neste percurso de vida ela conta apenas com quatro dos seus cinco filhos nascidos, perdeu abruptamente um deles há cerca de 5 anos. A morte do marido e do filho foram as duas ultima situações mais dolorosas que ela teve de enfrentar.
Mesmo assim a sua tenacidade e capacidade de renascer é tão grande que foi possível dar a volta e seguir em frente. O maior atrevimento que teve foi tirar a carta de condução, comprar um carro e começar a conduzir.
De resto passou a gerir tudo sozinha, as casas, os inquilinos, os pagamentos e as compras. Enquanto pode fez as suas viagens, organizadas algumas pela paróquia outras por uma amiga, faz voluntariado, saí todos os dias, vai á igreja, á missa, tomar chá com as amigas, tratar de qualquer assunto pessoal. Penso que ainda é isto que a deixa tão activa. Faz tudo sozinha, pode depender dos outros pontualmente e para isso pede apoio às amigas mais próximas.
Os filhos muito raramente estão presentes, cada um no seu espaço, cada um na sua vida, são muito pouco prestáveis, o contacto além de frágil, é muito pouco afectuoso.
Hoje ela vive acompanhada por um dos netos, por sinal o meu filho mais velho, que estuda no Estoril e vive lá em casa. Por lá também já viveram pelo menos 3 dos filhos que se casaram, embora tivesse sido temporariamente, e ainda lá viveu também durante uns 5 anos, o neto mais velho.
Recordo-me que um dia, naqueles momentos de maior tristeza, ela a falar comigo, disse-me “ai filha, eu queria ir para o pé do meu marido, não estou aqui a fazer nada” e eu respondi-lhe “não diga isso porque ainda é aqui precisa”, e eu que o diga!
A quem nunca teve uma vida fácil, algum sofrimento, muita lágrima derramada, alguns dissabores, alguns desentendimentos motivados pela sua forte personalidade e o carácter acutilante, mas alguém que viveu um grande amor, que disso se pode orgulhar e recordar, que no íntimo é uma pessoa de sentimentos nobres e que muitas vezes ingloriamente preserva a família, desejo que os restantes dias sejam mais serenos, que a sua fé a acompanhe e aqueça a sua alma.
16.01.15




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