Não
existem famílias perfeitas
A minha mãe não era uma pessoa
fácil de satisfazer. Contentava-se com pouco, mas o pouco que tinha era para
ser perfeito, limpo, do melhor.
Lembro-me de ser criança e mesmo
já adolescente e desejar ter outros pais, os das minhas amigas, por exemplo.
Porque é que eu tinha um pai que não me deixava sair à noite, que não tinha um
carro para me levar à escola e darmos passeios aos domingos, que não me dava
uma semanada, e uma mãe que não gostava de passear pela cidade, de vir ao café,
de conviver com outras pessoas, de ir a estas, de ir à praia, de ir ao cinema
ou ao teatro. Que me lembro as poucas festas que íamos era ao Ateneu Comercial
do Funchal, às festas da flor, onde o meu pai entrava em concursos com as
flores que ele delicadamente cuidava. Eram catelaias, sapatinhos, orquídeas e
antúrios, conquistava prémios que se resumiam a taças de prata, algumas ainda
em dia se encontram num quarto lá para casa encavalitadas num móvel. Ainda
íamos a algumas festas de anos de amigos e filhos dos amigos dos meus pais, mas
a minha mãe fazia sempre uma grande fita para não ir. Confesso que quando ela
saia de casa e quando chegava à festa era sempre a mulher mais bonita, a mais
elegantemente vestida.
Mas o que eu não gostava mesmo
nada de ouvir era ela estar sempre a recordar-me que eu não tinha nada de “fada
do lar”, como é que um dia ia casar se nem sequer sabia fazer um crochet,
bordar um pano de cruz, fazer um bordadinho, arrumar uma casa como deve ser,
cozinhar e engomar. Eu tinha sempre a resposta na ponta da língua, dizia-lhe
“mãe eu vou ter muito tempo para aprender essas parvoíces, mas só mesmo o que
for preciso, nada de dedal e de agulhas”.
E ela insistia que mais tarde eu
não ia ter quem me ensinasse, que as minhas primas eram um exemplo de
raparigas, perfeitas, viviam todas em casa dos pais, solteiras, que um dia iam
ficar lá em casa, sempre para cuidarem dos pais, para arrumarem a casa, fazerem
o almoço, irem à missa. Eu respondia que se ela quisesse, fosse lá busca-las,
que as adotasse, que um dia elas não iam dar netos nem constituir família.
Isto eram as nossas guerras, os
outros, o que os outros diziam, o que os outros pensavam, queria lá eu saber
dos outros…
Ainda hoje não quero saber dos
outros e incomoda-me o diz que disse, o comentário deste e daquela, do fez ou
não fez, do foi ou não foi, do tem ou não tem, etc, etc.
Já crescida e na fase da
adolescência era muito requisitada pela minha mãe para um trabalho árduo,
escrever cartas à família emigrada. Era uma tia, uma prima, uma amiga dos pais,
os compadres e mais uma serie de amigos da família.
Eu escrevia rápida e era mais
fácil a minha mãe ditar e eu escrever. O que ela nunca soube foi que muitas
vezes eu não escrevia tudo, abreviava a história, saltava episódios, e tudo aquilo
que eu achava que não era necessário não gastava caneta nem papel.
Refilava a toda a hora, não
gostava nada de me sentar naquela mesa da cozinha com tampo vermelho de fórmica,
puxa do bloco pautado e da caneta e toca a escrever. Só comecei a dar o valor
do que é receber uma carta quando fui para Lisboa estudar. Se há coisas corretas,
é o velho ditado popular que diz qualquer coisa do tipo “só damos valor às
coisas depois de as perdermos”. Certíssimo.
Hoje, e a vida tem destas coisas
que a gente não sabe explicar bem, o porquê das coisas, mas hoje, eu mantenho
correspondência justamente com aquela prima que durante anos e anos eu refilei
e barafustei para redigir algumas linhas. Vamos lá perceber, porquê. Não sei
explicar, parece-me que sinto um dever de consciência, não sei. Hoje escrevo de
livre vontade, sem esforço e sem obrigação.
Voltando ao título desta nota,
não existem famílias perfeitas, eu repetia isto para a minha mãe ouvir e hoje
faço o mesmo com os meus filhos. A família é uma coisa que não se escolhe, é a
que se tem, quer se goste ou não. Em pequena lembro-me de pensar porque é que
os meus 2 irmãos, rapazes, um mais velho um ano e outro mais novo um ano que eu,
haviam falecido. Porque não sobreviveram eles, teria sido melhor, teriam
ajudado a dar a volta ao meu pai para me deixar sair à noite, para namorar,
para ter ido mais vezes ao cinema, à praia e para ir dançar.
Hoje é óbvio que não penso
assim, tenho a minha família, uma boa família, grande, sempre a crescer, uma
família que não sendo perfeita se adaptou à vida rotineira e fugaz. Uma família
onde os laços são mais estreitos para uns do que para outros, uma família que
quando um precisa do outro não é preciso pedir ajuda, sente-se na voz, no olhar
e na dor.
Agora e neste momento,
escasseiam-me as palavras.
22.01.2015
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