quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Não existem famílias perfeitas

Não existem famílias perfeitas
A minha mãe não era uma pessoa fácil de satisfazer. Contentava-se com pouco, mas o pouco que tinha era para ser perfeito, limpo, do melhor.
Lembro-me de ser criança e mesmo já adolescente e desejar ter outros pais, os das minhas amigas, por exemplo. Porque é que eu tinha um pai que não me deixava sair à noite, que não tinha um carro para me levar à escola e darmos passeios aos domingos, que não me dava uma semanada, e uma mãe que não gostava de passear pela cidade, de vir ao café, de conviver com outras pessoas, de ir a estas, de ir à praia, de ir ao cinema ou ao teatro. Que me lembro as poucas festas que íamos era ao Ateneu Comercial do Funchal, às festas da flor, onde o meu pai entrava em concursos com as flores que ele delicadamente cuidava. Eram catelaias, sapatinhos, orquídeas e antúrios, conquistava prémios que se resumiam a taças de prata, algumas ainda em dia se encontram num quarto lá para casa encavalitadas num móvel. Ainda íamos a algumas festas de anos de amigos e filhos dos amigos dos meus pais, mas a minha mãe fazia sempre uma grande fita para não ir. Confesso que quando ela saia de casa e quando chegava à festa era sempre a mulher mais bonita, a mais elegantemente vestida.
Mas o que eu não gostava mesmo nada de ouvir era ela estar sempre a recordar-me que eu não tinha nada de “fada do lar”, como é que um dia ia casar se nem sequer sabia fazer um crochet, bordar um pano de cruz, fazer um bordadinho, arrumar uma casa como deve ser, cozinhar e engomar. Eu tinha sempre a resposta na ponta da língua, dizia-lhe “mãe eu vou ter muito tempo para aprender essas parvoíces, mas só mesmo o que for preciso, nada de dedal e de agulhas”.
E ela insistia que mais tarde eu não ia ter quem me ensinasse, que as minhas primas eram um exemplo de raparigas, perfeitas, viviam todas em casa dos pais, solteiras, que um dia iam ficar lá em casa, sempre para cuidarem dos pais, para arrumarem a casa, fazerem o almoço, irem à missa. Eu respondia que se ela quisesse, fosse lá busca-las, que as adotasse, que um dia elas não iam dar netos nem constituir família.
Isto eram as nossas guerras, os outros, o que os outros diziam, o que os outros pensavam, queria lá eu saber dos outros…
Ainda hoje não quero saber dos outros e incomoda-me o diz que disse, o comentário deste e daquela, do fez ou não fez, do foi ou não foi, do tem ou não tem, etc, etc.

Já crescida e na fase da adolescência era muito requisitada pela minha mãe para um trabalho árduo, escrever cartas à família emigrada. Era uma tia, uma prima, uma amiga dos pais, os compadres e mais uma serie de amigos da família.
Eu escrevia rápida e era mais fácil a minha mãe ditar e eu escrever. O que ela nunca soube foi que muitas vezes eu não escrevia tudo, abreviava a história, saltava episódios, e tudo aquilo que eu achava que não era necessário não gastava caneta nem papel.
Refilava a toda a hora, não gostava nada de me sentar naquela mesa da cozinha com tampo vermelho de fórmica, puxa do bloco pautado e da caneta e toca a escrever. Só comecei a dar o valor do que é receber uma carta quando fui para Lisboa estudar. Se há coisas corretas, é o velho ditado popular que diz qualquer coisa do tipo “só damos valor às coisas depois de as perdermos”. Certíssimo.
Hoje, e a vida tem destas coisas que a gente não sabe explicar bem, o porquê das coisas, mas hoje, eu mantenho correspondência justamente com aquela prima que durante anos e anos eu refilei e barafustei para redigir algumas linhas. Vamos lá perceber, porquê. Não sei explicar, parece-me que sinto um dever de consciência, não sei. Hoje escrevo de livre vontade, sem esforço e sem obrigação.
Voltando ao título desta nota, não existem famílias perfeitas, eu repetia isto para a minha mãe ouvir e hoje faço o mesmo com os meus filhos. A família é uma coisa que não se escolhe, é a que se tem, quer se goste ou não. Em pequena lembro-me de pensar porque é que os meus 2 irmãos, rapazes, um mais velho um ano e outro mais novo um ano que eu, haviam falecido. Porque não sobreviveram eles, teria sido melhor, teriam ajudado a dar a volta ao meu pai para me deixar sair à noite, para namorar, para ter ido mais vezes ao cinema, à praia e para ir dançar.
Hoje é óbvio que não penso assim, tenho a minha família, uma boa família, grande, sempre a crescer, uma família que não sendo perfeita se adaptou à vida rotineira e fugaz. Uma família onde os laços são mais estreitos para uns do que para outros, uma família que quando um precisa do outro não é preciso pedir ajuda, sente-se na voz, no olhar e na dor.
Agora e neste momento, escasseiam-me as palavras.
22.01.2015


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