terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A primeira oitava,

A primeira oitava,
O 26 de Dezembro é tolerância de ponto, assinalado como a primeira oitava, e sempre foi o dia de visitar a família, íamos invariavelmente a Santa Cruz.
Primeiro era a família do meu pai, muito pequena, resumia-se apenas a uma casa, uma tia que vivia no Sitio do Cano, mesmo por detrás do Aeroporto. Era uma casa, que durante muitos anos sempre me pareceu em obras, as paredes exteriores em cimento, só depois de já bem crescidinha, a vi caiada de branco. Faziam uns dentinhos que o meu pai gostava, carne de vinha de alhos, galinha e um bom pão de casa.
O meu pai levava para oferecer, o queijo, a manteiga, as broas e os bolos de mel. Era assim para todas as casas das tias, primos e primas.
Eu queria que naquela primeira casa, a visita fosse bem rápida, para subirmos ao Janeiro e ir às outras casas, pois a convivência com as outras primas (os) era muito maior.
No Janeiro íamos entrando de casa em casa, por vezes subíamos por cima pelo Sítio do Valente e fazíamos a visita no inverso, pela descida.
O ritual era sempre o mesmo, ver o presépio, provar o vinho, um dentinho, falar com os familiares sobre os terrenos, a família emigrada, os filhos que estavam a crescer e a vida que não para e a vida que é dura.
Tinha um primo que reservava sempre um quarto para a “lapinha,” com tudo o que ela tinha direito, aldeia, igreja, banda de música, cabrinhas, agua, musgo, luzes e pós brilhantes espalhados pelo papel pintado com viochene.
Nas outras duas casas de baixo era diferente, iam-se adaptando aos tempos modernos, sem se perder as tradições faziam-se inovações. Achava interessante os enfeites que se pendurava na parede e nas portas dos quartos, uns laços, com folhas de azevinhos e outros ramos verdes, ora ornamentados com uns sinos, às vezes umas bolas às cores, umas velas ou ainda quadrados pequeninos simbolizando presentinhos de natal. Era tudo feito com o máximo cuidado, quer na conjugação das cores, com os móveis e com os espaços diferentes, fosse na sala, no corredor ou na cozinha.
O presépio era sempre mais pequeno, mas muito delicado, um bom menino jesus, com vestido de linho e bordado madeira, utilizavam pedras, rochas e galhos para imitação da gruta, simbolizando o nascimento, a vaca e o boi. Tudo servia para demonstrar a simplicidade e a modéstia no nascimento de Jesus.
As casas estavam imaculadamente limpas. Na altura da Festa, caiavam-se as casas, pintava-se a cozinha, a mesa, as cadeiras e os armários. Utilizava-se loiça e toalhas novas, os bordados e os naperons eram primorosamente engomados. Havia sempre qualquer coisa de novo, umas cortinas, um tapete, um candeeiro, uma mesa, um objecto diferente.
Os convites para o jantar eram disputados entre as duas casas, “jantas aqui, não, ali em baixo, este ano não jantamos, vamos mais cedo”, era sempre difícil acertar com o sítio certo onde íamos jantar. Não queríamos ferir susceptibilidades mas quase sempre comíamos na casa do meio. Tinha mais gente, mais primas, mais mulheres e era maior.
Jantávamos sempre muito bem, era a canja, a carne assada feita pelo Tio, a galinha a carne de vinha de alhos, o pão, o vinho e uma panóplia de sobremesas. As primas, aqui davam asas á imaginação e á criatividade, faziam sempre umas coisas diferentes. Recordo um bolo de caramelo recheado com nozes, pudim de maracujá, de ananás, outro de frutas muito picadinhas, e bolo de bolacha com creme de café. Gostava também do café de saco e já açucarado que se tomava a seguir ao jantar.
Depois do jantar ou antes no dia de Natal à noite, chegava o meu primo de Lisboa, passava a época até o final de ano. A sua presença aquecia o espaço, o sorriso dele enchia a alma, trazia bolachas ou caramelos para as tias. Às vezes a Tia do Curaçau também lá estava para passar o Natal em Santa Cruz. Hoje, a única filha dela fala em um dia vir cá passar o Natal. Ando sempre a insistir para que o faça o mais rapidamente possível, enquanto as casas existem, enquanto temos a família, enquanto os laços ainda são estreitos.
As primas ainda colocavam na mesa uns aperitivos deliciosos, umas azeitonas previamente preparadas com o alho, orégãos e pimentos, amêndoas torradas e salgadas, broas e outras iguarias. Não esqueço os licores, o meu preferido, o de tangerina, mas também havia um de caramelo muito bom.
Ainda íamos à casa de baixo, à última, nessa a minha mãe levava sempre uns presentes diferentes, era uma camisa para o primo, um pijama para a prima, umas meias ao tio. Eu sempre percebi porque ela os mimava de uma forma diferente, tinham perdido a mãe, e aquilo era uma atenção especial. Éramos sempre muitos, a família quando se reunia, não parava de comer, de falar, de falar sempre muito alto e o regresso era sempre muito tardio.
O meu pai jogava à bisca com os tios e os primos e no final era sempre um baralho de cartas rasgado, aquilo era à séria. Eu nunca participei nos jogos, sempre tive mau perder, preferia ficar na conversa com as primas ou a ouvir o meu tio a contar anedotas. Todos riam com vontade, ele tinha muito jeito e sabia sempre uma nova. O tio ainda é vivo, já passou dos 90 anos, solteiro, um homem muito alto, que esteve emigrado na Rodésia, passou também pela África do Sul. Um homem com vivências interessantes, único homem entre cinco mulheres. Foi dos primeiros do sítio a ter carro e por isso era assediado a fazer de táxi e a levar pessoas de um lado para outro. Era muito cúmplice com a minha mãe, e muitas vezes quando vinha á cidade passava sempre pela minha casa. Nessas visitas, onde se sentava na mesa da cozinha a tomar um café, conversava e deixava a minha mãe satisfeita. Lembro-me de ele dizer “o que fazes mulher, que não comes”, “teu marido põe-te à fome”, a minha mãe sempre foi muito magra, sempre foi uma mulher de pouco apetite e não comia muito.
À noite ainda aparecia por lá um grupo de cantares da época, vizinhos que vinham com o rajão, a braguinha o acordeão e a gaita, tocar e cantar, desafiavam a minha mãe para cantar o fado, mas com o meu pai lá presente era coisa que não chegava a acontecer.
Neste dia via a minha mãe feliz, alias sempre que a minha mãe estava em santa Cruz, reunida com as irmãs, as sobrinhas e no fundo com toda a família dela, a minha mãe era feliz. Era ali o espaço dela, que foi teimosamente roubado pelo meu pai quando se casou e vieram viver para o Funchal.
Após a morte do meu tio, já lá vão pelo menos dois anos que deixamos de cumprir este ritual, por uma maneira ou por outra deixamos de lá aparecer. Lamento muito perderem-se estes hábitos, mas à medida que uns vão nos deixando, outros vão chegando, tudo se vai alterando, e quando damos conta quase acabamos por perder as nossas raízes. A Família vai ficando mais circunscrita à casa, aos filhos, aos netos, aos sobrinhos netos, e os outros ramos vão se apagando à mercê do tempo.

30.12.14

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ao Tomas,

Ao Tomás
Porque hoje fazes 21 anos. Foi naquele fim de tarde do dia mais frio do ano de 1993, que nasceste tu franzino, de pele enrugadinha e muito cabelo escuro.
Hoje, és já quase um homem, com alguma maturidade intelectual e física, o suficiente para seres responsável pelos teus atos.
Sinto-te a crescer, a ganhares asas, a começares a pensar por ti, a saberes fazer as tuas opções, a seres criterioso, crítico e dono do mundo, como te sinto muitas vezes nas considerações que vais tecendo sobre o estado do país, das forças de autoridade ou da forma incontrolável como o homem vem destruindo o seu planeta.
Muitas paixões acalentaste desde a infância até a tua adolescência, o futebol, o BTT, as saídas nocturnas, os amigos, os copos, as motas, os desenhos, a viola, as letras, as músicas, o voluntariado que fizeste no ultimo ano antes de ires para a faculdade e por ultimo a escrita, não te conhecia este ultimo talento, mas deste-me um prazer enorme.
Nunca gostaste muito da natação, talvez por seres sempre muito magro, sentias bastante frio e na creche eu sabia que esses dias eram uma tortura. No Liceu tudo fizeste para te baldares às aulas de Educação Física no dia de piscina.
Nunca dormiste muito, desde bebé sempre foi difícil fechar-te o olho, no carro a caminho da creche ou durante um passeio, enquanto o teu irmão adormecia só com o motor do carro a trabalhar, tu mantinhas os olhos bem abertos, atento a tudo o que se passava à tua volta, colavas a tua cara à janela.
Sempre foste muito rezingão, com mau humor, não gostas de beijos nem de grandes demonstrações de afeto, mas eu sei que precisas desses afetos, de abraços, de colo, de companhia, de ternura e de carinho.
Sei que posso contar sempre contigo, sei que tens um coração muito grande, que quando cresce muito, começa a doer, deixa de caber aí dentro, o espaço míngua. Gostava que o partilhasses mais vezes com a mãe, ficas no silêncio, não dizes nada, mas se calhar eu poderia ajudar-te. Prometo que só te abraço, não faço perguntas, não te cubro de beijos e não te mexo no cabelo.
As tuas palavras custam a sair, parece-me que se elas pagassem um imposto por ficarem aí dentro, tu hoje eras um milionário e eu não passava da rua. As minhas saem quase sem eu dar por isso. Talvez se eu aprendesse a contê-las, ganhava mais a tua confiança.
Não questiono e sei que gostas de mim, mas nem sempre fomos os mais afetuosos um com o outro, tivemos muitas discussões, esbarramos muito os dois, às vezes sinto-me incompreendida, se calhar com o passar dos anos vais aprender a conhecer-me melhor e a confiares em mim.
Tens sempre as mãos muito geladas, tens sempre muito frio, és muito requintado nas tuas amizades e não só, a comida, as roupas, os sapatos, até os lençóis e o pijama, tem tudo de ter requisitos muito próprios. Não comes do mesmo prato que outra pessoa, não tocas no pão se alguém já o beliscou primeiro, nunca terminas a refeição, deixas sempre qualquer coisa no prato, desde criança, que sem qualquer resultado eu tento que não deixes restos.
Gosto especialmente da tua expressão, do teu ar sereno, do teu olhar penetrante, e do teu sorriso envergonhado, da entrega da tua mão, do teu cheiro que fica pela casa, dos teus gestos, os teus sons, os teus hábitos, e de todas as tuas coisas que ficaram infinitamente intocáveis no teu quarto quando foste para Lisboa estudar.
Debaixo da tua timidez esconde-se uma grande pessoa, um amigo, um filho, que tem um coração cheio de sonhos, aventuras, recordações boas e menos boas, alegrias, tristezas e mágoas.
A ti filho, que tens seguramente uma longa vida pela frente, anseio para que não desistas dos teus quereres, nem das tuas vontades, tudo se conquista, quando se quer muito uma coisa, com persistência e tenacidade, tudo se alcança.
Vinte e um anos são apenas alguns. Alguns dos muitos que hás-de viver, gostaria eu que o fizesses intensamente, com vontade, com garra e com alma de viajante. Eu acho que tu tens alma de caminhante, daqueles que por onde vão e passam deixam algo, que os identifica e os distingue dos demais.
Tudo o que lembro agora destes anos vividos juntos é que foi sempre muito bom. Foi tudo com muita felicidade. Felicidade por tudo e por nada. E é pelas pequenas coisas, pelos grandes momentos, pelas conversas sempre curtas, por todos os risos e por cada lágrima e pelos silêncios verdadeiros, que tu bem os conheces que hoje agradeço por existires na minha vida.
Ficaria aqui a escrevinhar mais umas quantas coisas, mas sei que me vais criticar, por isso prometo não gastar mais palavras.
18.12.14


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Natal em casa,

Natal em casa, 
A minha mãe era uma pessoa atrasada por natureza. Tive sempre a sensação que ela vivia a pensar que o tempo lhe ia render mais do que efetivamente as 24 horas que tinha um dia. Embora de ano para ano tentasse programar as coisas a longo tempo, era inevitável, chegávamos à véspera de Natal e ainda havia tanta coisa para fazer. Era uma mulher muito perfeccionista, tudo tinha de ser bem feito, como ela queria, como ela pretendia, sob o seu olhar atento e perscrutador.
A minha mãe não era uma pessoa de muitas conversas, era tímida, falava pouco, observava muito, tinha até um ar altivo, que para quem não a conhecesse bem julgava tratar-se de uma pessoa arrogante. Era uma mulher muito bonita, elegante, discreta, de bom gosto, algo requintada, uma pessoa muito bem formada.
Nunca trabalhou fora, era doméstica de profissão e mãe a tempo inteiro, mas suponho que tinha uma alergia a relógios e a controlar o tempo.
Os preparativos para o Natal poderiam começar com a antecedência de um mês, no entanto nunca as coisas estavam prontas atempadamente.
Eu às vezes até a compreendo, ainda hoje, não gosto destes dias de antecedência, não gosto daquelas limpezas profundas, dos afazeres, das azáfamas da época, das únicas coisas que faço com prazer nesta época é cozinhar, por a mesa, fazer jarras, e enfeitar a casa.
A campainha da casa não parava de tocar nos dias da festa, eram prendas que vinham entregar ao meu pai, dos amigos do Sino, da firma Martins e Rebelo, da Ilma. dos compadres (pelo menos 6), da Farmácia, dos afilhados, da loja onde ele comprava os fatos e as camisas, etc. Eu gostava de ver aqueles embrulhos de papel colorido, com renas, pais natais, bolas, arvores, flores, anjos e estrelas.
A véspera de Natal era sempre o dia mais crítico, o meu pai chegava a casa mais cedo, sempre muito bem-disposto, entrava a cantar, tomava banho e colocava discos de vinil com músicas de Natal, recordo-me particularmente de ouvi-lo cantar “silent night, noite feliz e jingle bells”. Só o ouvi a cantar no dia 24 de Dezembro.
A minha mãe nos seus afazeres, atrasada, atrapalhadíssima, cansada e de mau humor, não estava para muitas folias, enquanto ele, já preparado para querer ir para a missa do galo, ela, apenas desejava descansar.
A cera já estava dada pela casa toda, cheirava bem, cheirava a alfazema, mas ainda faltava puxar o lustro com a máquina, colocar os vasos de flores e plantas dentro de casa, escolher os naperons de bordado madeira, fazer as jarras, e ajeitar mais uma coisa ou outra.
Havia ainda os preparativos da cozinha, o meu pai exigia canja de galinha e sandes da mesma para comermos à chegada da missa do galo. A carne de vinha de alhos já estava no frigorífico bem preparada para o dia de Natal.
O pinheiro e a lapinha já estavam feitos, pela minha irmã mais velha, também sempre tudo à última da hora, mas as searinhas, o trigo tinha sido posto nesse dia ou no anterior, por isso elas só deveriam aparecer bem depois do Natal.
A minha mãe incomodava-se com os telefonemas, tiravam-lhe tempo, estava sempre a interromper o que estava a fazer para ir atender o telefone. Lá em casa era hábito o telefone tocar durante muito tempo até que alguém atendesse, o que sendo curioso também acontece na minha própria casa.
Telefonavam os amigos que tinham emigrado para a França, para a América, para a Venezuela, mais os que estavam no Continente. O meu pai gostava de falar com todos esses amigos, falava muito alto, como se estivesse mesmo, mesmo, do outro lado do mundo.
Tudo sempre até á última a casa ficava perfeita, fresca, cheirosa e bem arrumada, mas o meu pai zangava-se sempre com a minha mãe no dia 24 de Dezembro e acabávamos por ir para a missa do galo sem a minha mãe. Não tenho muita memória de ela nos acompanhar. Íamos sempre à Igreja da Sé, o meu pai gostava de chegar a horas, entravamos pela porta traseira, ficávamos ao lado da sacristia e eu acabava sempre por me sentar numas escadas que ladeavam a porta de trás. O meu pai gostava da missa da Sé, porque era celebrada pelo bispo e ele falava também outras línguas, o inglês, o francês o alemão o espanhol e o italiano. Cantavam o Gloria In Excelsis Deo e Glorias e Aleluia. Penso que na cabeça do meu pai, isto era muito chique. Encontrava também os meus amigos, que apesar de entrarem na igreja, não assistiam à missa, vinham depois para a rua, largar bombas, fumar, beber e galhofar. E eu, que tinha ordem para não sair da igreja ficava ali a roer-me de inveja, desejando ir lá para fora e juntar-me aos outros. Contudo, sabia escolher bem o meu ponto estratégico, ali sentada nas escadas via todos os que iam entrando e saindo da igreja, digamos acabava por ficar um nadinha consolada.
Terminada a missa regressávamos a casa para cearmos a canjinha e as sandes de galinha. Já cansada não ia para a cama sem antes deixar o meu sapinho junto à árvore de Natal. Curiosa e com dificuldade em adormecer, vinha silenciosamente escada abaixo, pé entre pé, espreitar a árvore e os presentes.
O acordar do dia 25 era muito original em minha casa, diria eu, único, a minha mãe acordava-nos com um quebra jejum. Ia ao nosso quarto com um tabuleiro onde continha, um copinho de genebra ou de licor de tangerina, uma fatia de bolo de laranja, broas de mel, bolo de mel, laranja e tangerina. Sentava-se a beira da cama para nos desejar um bom natal e só depois de comermos é que vínhamos para baixo abrir as prendas. Nunca havia muitas, é certo, mas as que havia eram mesmo as que eu esperava.
O pequeno-almoço era tardio, como a tradição imponha a carne de vinha de alhos, com as fatiotas e o café preto, o almoço pelas 15 da tarde era a galinha ou a carne assada. Havia sempre uma sobremesa deliciosa, que era o pudim de pão e suspiros, o pudim de bolo com custard à inglesa e o pudim de “veludo” (de ovos).
À noite voltávamos a colocar na mesa o frango a carne assada, a carne de vinha de alhos e as fatiotas.
Quando nós eramos pequenos os presentes abriam-se no dia 25 de manhã, hoje todos têm as suas famílias nucleares e só lá vão a casa no dia 25 ao jantar, os presentes abrem-se depois com um ritual que foi instituído após a chegada dos netos à família. Um adulto disfarça-se de pai natal, toca á campainha da porta, badala o sino e com o saco cheio de prendas começa a distribuir os presentes. É a delícia dos mais pequeninos. Continuamos a noite em família, em reunião à volta de uma mesa grande cheia de comida ou no quintal conversando e falando muito efusivamente em altos decibéis como é próprio da nossa família.
Pode não ser o Natal mais bonito ou mais elegante, pois não existe propriamente a tradição da ceia de Natal na noite de 24, nem se come peru assado ou recheado, nem tão pouco o bacalhau e as couves, mas é o Natal da minha infância, o Natal que ainda hoje vivemos em casa dos meus pais, todos em familia.

11.12.14






quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A Menina da Manteigaria,

A Menina da Manteigaria,
Durante muitos anos na Manteigaria Zarco só trabalhavam pessoas do sexo masculino. Penso que foi após o 25 de Abril que passou a ter uma senhora no guichet da cobrança. Tinha baixa estatura, cabelo muito curto, super-educada e de uma simpatia contagiante.
Trabalhava no primeiro andar, num compartimento alto forrado a madeira e com um guichet de vidro, que a separava dos clientes. Mais tarde desceu para a cave e ficava sentada ao lado da mesa de trabalho do meu pai. Era o que nos dias de hoje representa, uma secretária. Atendia os telefones, anotava e registava as encomendas, contactava os clientes e fornecedores e ainda dava uma ajudinha na contabilidade. Falava muito, dava uns beijos repenicados quando cumprimentava as pessoas, era uma pessoa muito afectuosa.
Durante muitos anos foi o braço direito do meu pai e julgo que o amoleceu um bocadinho. O meu pai era uma pessoa muito autoritária com os empregados, penso que muitos deles o queriam ver pelas costas, era irascível. Os rapazes que trabalhavam na cave a carregar os caixotes com varias mercadorias eram diariamente humilhados, gritava com eles e ameaçava que no fim do mês iam todos para o olho da rua. Lembro-me particularmente de um rapaz muito alto, gostava de falar comigo, um dia saiu e foi trabalhar para a lota. Sei que se casou, teve filhos, divorciou-se e ouvi dizer que vive algures, no estrangeiro. O rapazito tinha uns esgares um pouco efeminados, mas isso não fazia dele menos homem do que os outros. Só que esse pormenor foi o suficiente para o meu pai implicar com o rapaz. Dos outros que por lá passaram não me recordo bem, pois também não ficavam muito tempo, estavam sempre a entrar e sair caras novas. Apesar da rigidez do meu pai, ele ajudava-os sempre a terem uma vida melhor, a procurarem outros empregos e a emigrarem para outras terras, e era muito comum anos mais tarde passarem por lá para o cumprimentar.
Nunca conheci pessoa mais fiel ao patrão que o meu pai. Por vezes até me parecia demasiado subserviente, nesta sua dedicação ao seu chefe. Deixou cópia numa das minhas irmãs.
Recordo com orgulho as palavras dele, dizia, até para mandar é preciso saber. É preciso saber dar uma ordem, e quando se manda fazer é preciso saber como se faz.
Talvez se ele tivesse sido um bocadinho menos autoritário, talvez ele não tivesse granjeado algumas inimizades. Nem sempre as pessoas sabem compreender que as nossas atitudes são o reflexo da vida que tivemos. O meu pai era quase filho único, tinha um irmão, que havia emigrado para o Brasil e ele ficou sozinho com a responsabilidade da minha bisavó, da avó e do avô. Quer dizer, lá bem no fundo essa responsabilidade passou a ser da minha mãe, ela é que cuidou das duas idosas, isto porque o meu avô morreu cedo, e dele, as lembranças que retenho são nulas.
O meu pai não teve uma vida fácil, foi sempre um homem de muita luta e de muito trabalho, sempre preocupado em não faltar com nada em casa, mas mesmo assim, e com o pouco que tinha soube aproveitar e viver na companhia da família e nas reuniões que organizava com os amigos ao sábado á tarde. A minha mãe pelo contrário, sempre nas suas lamentações acabava por muito raramente fazer o que queria ou o que prometia à sua consciência que ia fazer. Hoje sobra-lhe tempo, mas infelizmente não tem a saúde necessária.
A Manteigaria Zarco era uma mercearia fina, aquilo que hoje se designa de “loja gourmet”, tinha produtos importados, diferentes e muito bons, vendia caju, amêndoas, avelãs, nozes, figos e tâmaras, especiarias exóticas, custard inglesa, salmão em lata, bacalhau, café, queijos, azeitonas, marmelada, bacon, presunto e fiambre, também vendia chocolate em pó, e tabletes, uma panóplia de rebuçados, caramelos e bombons de recheio. Tinha uns grandes frascos de vidro com vários compartimentos, onde os empregados metiam as mãos para retirar os bombons e vender a peso. As coisas eram quase todas vendidas a peso, metidas em sacos de papel branquinhos e atados com um cordel muito fininho, as tâmaras o fiambre e o queijo eram embrulhados manualmente em folhas de papel vegetal.
Há bem pouco tempo encontrei no supermercado a menina da manteigaria, continua igual a si própria, para que saibam, a menina é uma senhora com mais de 70 anos, casada, tem um único filho, que é o seu “ai jesus”, falamos, conversamos sobre o pai, a mãe, as manas, os meus filhos, as netas e o neto dela.
A Manteigaria era um ponto de passagem numa das ruas mais centrais e comerciais do Funchal, a Rua Dr. Fernão de Ornelas, era o ponto de encontro de quem vinha ao Funchal às compras, dos familiares e conhecidos do meu pai e da minha família que não viviam no Funchal e que quando vinham à cidade, passavam por lá e pediam para guardar uns sacos, e umas compras, aliviando assim o peso de percorrer as ruas da cidade para ir ao médico, ao banco, ou à caixa de previdência. Era também o local de procura para quem tinha chegado do estrangeiro e quisesse entrar em contacto com a minha família. À conta destas visitas inesperadas, muitas vezes o meu pai na hora do almoço não chegava a casa sozinho, obrigando a minha mãe a por mais um prato à mesa.
Hoje no lugar da Manteigaria Zarco, já foi uma loja do Alberto Oculista e agora é uma loja de uma cadeia de franschising de roupa interior.
Sinto que pouco ou nada permanece para além das nossas memórias, tudo muda, tudo se transforma, tudo se altera em prol de um mundo moderno, de compras num constante atropelo de um qualquer supermercado de uma superfície comercial, desprovidas da cortesia do empregado de balcão e de um atendimento personalizado.

03.12.2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A última caminhada deste ano.

A última caminhada deste ano.
As primeiras caminhadas a seguir à tua partida foram difíceis. A memória estava bem presente, e como tudo foi muito de repente, muito insólito, muito injusto, a tua ausência física doeu bastante. O corte definitivo e a ausência física são coisas quase intoleráveis.
Gostava sobretudo da tua boa gargalhada, da tua maneira de ser tão consensual, do teu humor sarcástico, a tua presença imponha-se, eras grande em tamanho e tão maior na alma. O teu sorriso era fácil, simples, e espontâneo.
Sempre te fiquei reconhecida pelo apoio que concedias aos que tinham mais dificuldade, recordo-me particularmente de um percurso bastante ascendente que fizemos do Paúl do Mar para a Raposeira. Eu não sei como fui capaz de chegar até lá acima. Foi o mar, a tua companhia e de mais um outro colega que me foi encorajando a não desistir, a continuar e a chegar ao fim.
Tu estiveste lá sempre, parando, esperando, interrompendo a tua cadência no andar, estimulando a minha capacidade de resistência, suportando os meus refilanços, e as minhas rezingisses
Dizias, “ vamos Luísa, já falta pouco, vês o que já andamos, olha para baixo, vê o mar, vê esta vista, olha as pedras, o fundo tão claro, a água tão pura, esta cor, este azul, verde, não se pode perder esta perspectiva”.
As tuas palavras davam-me alento e mesmo contrariada lá eu subia mais um bocadinho, chegamos junto do grupo creio eu, que com um hora de atraso. Devo ter sido motivo de chacota e de gozo, mas também não me incomodei com isso. As caminhadas fazem-se por prazer, por satisfação e por gostarmos de estar entre amigos
Nesta semana particularmente tenho-me lembrado de ti, pois no sábado temos a ultima caminhada deste ano e comemoramos o final com um almoço de convívio.
Gostavas destes almoços comensais, conversavas, rias muito, contavas uma anedota aqui outra acolá, eras bastante comunicativo, não tenho ideia de me aperceber que houvesse alguém que não gostasse de ti. Eras uma pessoa bem formada, com carácter, firme, dono da tua opinião, entregue a boas causas, com preocupações sociais, um homem de ideais.
Sempre que oiço “bossa nova ou jazz”, lembro-me invariavelmente de ti, tinhas uma compilação de CDs que ias orgulhosamente adquirindo na FNAC, por uns míseros cinco euros, com músicas e covers bem interessantes, e que ponhas todos quantos iam contigo de boleia a ouvir, e dizias, “é gira não é? olha desta a minha filha gosta muito, e esta do grande Vinícius ”
Às vezes lembro-me de como estará a tua família, os teus miúdos, que são tão pequenos, gostavas tanto deles, falavas muito deles, contavas histórias que se passavam no dia-a-dia, lá em casa, enquanto te preparavas para a tua caminhada e a tua filha te observava e já estava a pé, pronta para assaltar o canal Panda.
Mas tenho-me ficado só pela lembrança, porque as pessoas são mesmo assim, pensam, lembram-se, mas não têm coragem de ir mais além, e eu também acho que no fundo é legítimo, nós não conhecemos a tua família, não vamos invadir assim um espaço que não nos pertence.
E depois também há o tempo, com o tempo tudo passa, tudo se esvai, tudo se dissipa, ainda te fizemos uma homenagem durante uma caminhada, pensamos em ti, rezamos, entrelaçamos todos as mãos e gritamos o teu nome, mas depois é mesmo assim, a vida continua, segue um dia atrás do outro, não para, fica a dor e uma saudade infinita.
Deixaste com certeza muitos projectos a meio e alguns sonhos por cumprir, mas deixaste a melhor coisa do mundo um legado para a história, dois filhos, que carregam o teu nome, os teus genes, parte de ti e um todo que se completam. Serão na certeza, um dia o teu maior orgulho.
28.11.14






terça-feira, 18 de novembro de 2014

Na tasca do urso,

Na tasca do urso, 
Há dias estive em Lisboa e fui jantar a um restaurante muito peculiar. A Tasca do Urso, assim se chama, fica numa rua do Príncipe Real mesmo em frente à Escola Politécnica. Todo ele é indescritível, com peças de muito uso e cada uma com a sua história, que por ter sido a primeira vez que lá fui, ainda não sei nenhuma das histórias.
À entrada deliciei-me com o chão, azulejo preto e branco, um canapé, um maple daqueles de orelhas, uma mesa velha com tampo em mármore, um pequeno gira-disco, uma colecção de vinis, o She do Aznavour em primeiro plano, uns candeeiros antigos, pratos, uma coleção de galos de Barcelos, mesas e cadeiras, todas diferentes umas das outras, nas paredes, quadros com retratos antigos, mesmo daqueles a preto e branco, vários posters de publicidade, da Nívea, da Noite de Santo António, do Azeite Galo, louceiros e mesinhas do tempo das nossas avós, loiça variada, bules, chávenas, taças, maquinas de café, daquelas de enroscar, onde por baixo fica o pó e a agua depois vai subindo.
Bebemos um gin para aperitivo, temperado com sementes de romã, e limão, jantamos logo na primeira sala, na mesa da cama. A mesa da cama, assim o é descrita, porque o banco (suficiente para se sentarem duas pessoas) assenta nas costas de uma cama Como a mesa era para apenas 3 pessoas, nesse banco sentei-me eu e posei as duas malas das senhoras.
O restaurante tem mais uma sala e termina com um pequeno pátio interior com 3 ou 4 mesinhas. É deveras acolhedor, bastante familiar, senti-me quase como se estivesse em casa, não fosse o inconveniente de estar a abarrotar de gente.
O pessoal de serviço simpático, gentil e atento, comi umas entradas de fazer crescer água na boca, alheira transmontana com chévre e doce de tomate, pataniscas de bacalhau, pica pau, foi egras, queijos, tudo muito bem regado com um excelente vinho tinto da região do Douro. Para a sobremesa fizemos uma “vaquinha de mousse de chocolate, mousse de lima e farófias com canela.
A conversa decorreu muito fluidamente, as companhias assim o permitiam, falamos da vida, de episódios passados, com alguma nostalgia, alguma tristeza e magoa à mistura, de acontecimentos familiares, alguns ainda bem presentes, outros nem por isso, falamos dos filhos, das diferentes personalidades, dos amigos, e da família que aos três era comum.
Muita coisa ainda ficou por falar, não foi oportuno, mas sei que um dia retomaremos alguns assuntos que apenas foram abordados ao de leve.
Sei aquele restaurante prima pelo ambiente familiar e despretensioso, pela conversa descontraída, pela amena cavaqueira, e pelas festas temáticas que organizam, dos anos 60,70 e 80, dos magustos, dos antigos amigos do liceu, dos antigos amigos do bairro, etc.
É sempre um ponto de encontro, quem me convidou a lá ir, assim sem ser combinado previamente, encontrou logo uns 4 ou 5 amigos, amigos de infância, da escola ou do colégio.
Foi uma noite agradável, de boa conversa, com muita sensibilidade, na mistura de afetos onde embora a distância separe algumas das pessoas intervenientes os laços que no entanto as unem, são bem mais fluidos e transportam o carinho e a doçura num gesto, num olhar apenas ou num esgar espontâneo.
A ti, miúda, que muito te admiro, que muita luta travaste, que muita dor enfrentaste, algumas perdas importantes assististe numa impotência atroz, que muita lágrima deixaste deslizar pela tua face, desejo sobretudo que sejas feliz.
Saí já madrugada fora, e quando vinha no carro, senti que por algum tempo fiquei de alma cheia, reconfortada, pelos momentos que vivi, pela amizade que senti, pela ternura e pelo entretenimento saboreado naquele pedaço de noite.
Obrigada miúda pelo jantar que me proporcionaste.
18.11.14




quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A Mariazinha

A Mariazinha
Andava eu no liceu e de vez em quando ia à Rua Bela de São Tiago a casa de uma amiga de infância da minha mãe, melhor dizendo a irmã dela, é que era a amiga da minha mãe, mas essa, vivia em Setúbal. A Mariazinha tinha vivido antes numa casa na Ponte Nova. A ideia que retive da primeira casa era que tinha uma grande escadaria, a porta dava diretamente para a Rua 31 de Janeiro, logo à entrada tínhamos de subir uma escada íngrime até chegar à sala, havia mais um ou dois andares, com os quartos pequenos sendo um deles, localizado numa espécie de torre, que tinha uma vista magnífica sobre a cidade do Funchal.
Na casa, junto ao liceu, recordo as manhãs em que tinha feriado e ia lá fazer-lhe uma visita, bebia um café e uma sandes, enquanto ela na cozinha, preparava o almoço para o marido.
O marido era um militar, com uma boa patente, tinha estado em África à frente de um pelotão, usava uma farda verde escura, homem sério, de olhar duro, mas afectuoso para a mulher.
Às vezes quando tinha aulas à tarde ficava para almoçar, conversávamos as duas, eu fazia-lhe companhia. Ela lia muito, gostava especialmente de romances clássicos, como não trabalhava fora, era doméstica, fazia também crochet e malhas.
Era uma mulher pequenina, bonita, com uma boa gargalhada, muito disponível e de fácil trato. Gostava de se arranjar e estava sempre muito aprumada.
Ela tinha uma mão certa para a cozinha. Cozinhava divinalmente e geralmente pratos diferentes daqueles que eu comia em casa da minha mãe. Seguia-se um ritual que só mais tarde é que vim a compreender. Comíamos numa copazinha, uma salinha pequena e o café era invariavelmente tomado na sala acompanhado de um cigarro na mão da Mariazinha.
Ele, o marido, era um homem tipicamente machista, nada fazia em casa. Ela ponha a mesa, servia, levantava e levava o café na bandeja à sala. Tinham dois filhos, qualquer um deles mais novo do que eu, o rapaz, era muito baboso e a rapariga uma miúda enervante.
Passados uns anos o marido da Mariazinha foi transferido para o Continente, ficou colocado em Setúbal e a família mudou-se para lá.
Mais tarde e já a estudar em Lisboa cheguei a ir visitá-los e a passar alguns fins de semana com a família.
A rapariga continuava com um geniozinho especial, birrenta, o rapaz, um bom rapazinho, tímido, muito metido no seu canto.
A Mariazinha gostava muito de cães, mas daquelas amostras ou miniaturas tão irritantes quanto a filha. Nessa altura ainda não tinha perdido a minha fobia aos cães, e fazia a família prender o cão dentro de uma marquise, mas quando a pequena se zangava comigo espetava-me com o canino pela frente.
A Mariazinha era uma mulher à moda antiga, sem se anular como pessoa, vivia para agradar o marido. Tinha um problema que lhe perseguiu durante toda a vida e às vezes a deixava impotente, sofria de enxaquecas.
O marido foi o primeiro a falecer, o filho casou-se, a filha também mas entretanto divorciou-se. Sei que ela sentiu e foi-se abaixo com a morte do marido, eram o protótipo do casal que viviam um para o outro. Tinham o propósito, hoje raro, de se agradarem mutuamente e notava-se a cumplicidade entre eles.
Pelo que sei hoje a Mariazinha ainda é viva. Há uns anos atrás esteve na Madeira com a filha e a neta, esta, tão ou mais impertinente que a própria mãe, é caso para se comprovar o que diz o velho ditado “quem saí aos seus não degenera”.

13.11.2014

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A cantina do Lumiar,

A cantina do Lumiar,
Ficava num bairro de Lisboa, de classe média alta, novo para a época (anos 80), no Lumiar, numa transversal à Alameda das Linhas de Torres. Era uma cantina pequena, com um jardim grande à frente do prédio, um supermercado ao lado, um café em frente e uma residência universitária masculina também no prédio ao lado.
Fazíamos o trajecto a pé da nossa casa à cantina, era só uma ou duas paragens de autocarro. Passávamos pelo quartel do Lumiar, ouvíamos uns piropos dos magalas, a minha colega de quarto ouvia mais do que eu, ela era mais alta, usava sapatos com salto e por isso chamava mais a atenção. Eu ainda tinha aquele ar de “maria rapaz”, cabelo curto, calças de ganga e mocassins.
Pagávamos por uma refeição 35 escudos, a cantina tinha um horário de abertura ao jantar das 18:30 às 20:00. Quando eu não queria encontrar ninguém ou não estava virada para a conversa, bastava ir jantar, mais próximo à hora do fecho. Já não havia fila, eram só os atrasados e a comida também já escasseava.
Encontrávamos os amigos, os colegas e os conhecidos, conforme a hora que decidíssemos ir jantar. Os residentes da cantina eram sempre os do primeiro turno, os mais esfomeados, os mais assíduos, os mais carentes, os tão necessitados como eu.
Com eles fiz algumas amizades, conversas de circunstância, confidências de minutos de solidão e desconforto, muitas vezes palavras sem importância ditas para não ficar calada ou para não ser considerada menina “snob”. Falava com todos e claro, mais com os rapazes, os da residência. Lembro-me de quase todos, de um muito alto, de dois lá das Beiras, um do Fundão e um de Viseu, pequenos, com um ar muito tosco, humildes, um de Leiria, inteligente, culto e interessante, estudante de Filosofia, os outros na sua maioria eram todos estudantes de Direito. Havia também um grupo de açorianos, de madeirenses e de alentejanos, viviam todos naquela residência de 5 andares, em quartos partilhados. À excepção de um amigo de Filosofia, que infelizmente já não posso conviver com ele, todos os outros foram se saindo bem pela vida. Dois são Juízes, outros tantos exercem advocacia pelo país. Lembro-me de um, com ar mais espertalhão do que os outros, deveras sedutor, mas também baixote, no entanto com uma ambição inversamente proporcional à sua altura. Soube, não por ele, claro, que já tinha concorrido duas vezes ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e tinha chumbado. É assim, a vida não sorri da mesma forma para todos.
Enquanto esperava na fila, se fosse jantar, à hora de ponta 19:30, assistia a muitas zangas de momento, arrufos de namorados, marcação de encontros, esperas com desalento, tentativas de conquista e conversas, sempre as conversas dos mesmos galanteadores, a lançar isco a todas as caras novas que por lá apareciam.
Observávamos os novos estudante ou as caras desconhecidas e pelo que traziam nos braços tentávamos identificar o curso, se traziam batas brancas, vinham da Medicina, da Farmácia das Ciências e da Química, se vinham de máquinas calculadoras, eram do Técnico, Engenharias e Matemáticas, se traziam uma pasta na mão direita só podiam ser de Direito, se vinham com canudos eram da Arquitectura e das Artes se nada traziam a não ser os livros, eram os pelintras das Letras, Línguas, Literaturas e cursos afins
Nunca gostei da comida da cantina, e mesmo assim, aquela era considerada a melhor, porque era pequena e a confecção mais cuidada. Ainda hoje detesto comer num tabuleiro. Não gosto de ir para os centros comerciais, comprar comida a peso e vir de tabuleiro nas mãos para uma mesa.
Eu sempre fui de muito mau bico, mas devo de confessar que foi em Lisboa que aprendi a comer de tudo. Serviam canja numa tigela de plástico, sopa grossa, cheia de couve, cenoura, nabo e feijão. Nem queiram imaginar, eu que em casa da minha mãe comia a sopa em puré, tudo cremoso, tive de arranjar uns esquemas mentais e visuais para iludir aquela tigela. Como tinha direito a um papo seco, partia-o aos bocados e deitava na sopa, assim ia engolindo aquela miscelânea de verduras misturadas com o pão. Como também o segundo prato nem sempre era do meu agrado, peixe de rio, solha, salsichas com couve lombarda, ervilhas com ovos escalfados, pedia um copo de leite e um iogurte para sobremesa, penicava qualquer coisa do prato, e comia o restante.
A quem dava prazer ver comer eram os rapazes da residência, mais tinham, mais comiam. Os de lá de cima, da terra, tinham sempre no quarto uma ração de combate, enchidos, chouriços, broa, ficavam a estudar depois do jantar e ainda ceavam. Eram muito marrões, sobretudo os de Direito, nós ainda íamos para o café “Barão” e a seguir ainda vínhamos para casa ver a novela.
Mas todos nós, gostávamos daquela cantina, daqueles encontros diários, das trocas de olhares, dos sorrisos de mesa para mesa, dos pontapés dados por debaixo da mesa, tudo sem querer, tudo sem um propósito, daquela hesitação de quando se vem de tabuleiro na mão em direcção àquela mesa, aquele espaço estratégico que arranjámos para nos posicionarmos de frente por quem andávamos caidinhas na altura, tudo tão especial, tudo tão romântico, despretensioso e genuíno.
De vez em quando a malta depois de ter terminado o curso ainda voltava lá, mas já vinham diferentes, de fato, gravata e pastinha de cabedal preta na mão. Ainda tentei após terminar o curso, voltar à casa, ao espaço que dividi durante 5 anos, um dia senti que as caras já não me eram familiares. É preciso fazer um corte e libertar as amarras.
Não esqueço porém, como ali e por aquelas redondezas, muito cresci, muito aprendi, alguma coisa sofri também, fruto da minha ingenuidade e da candura própria de quem tem 18 anos e se vê numa grande cidade, sozinha e por conta própria.
Não voltei a ser assim com era. Não voltei a ser assim tão feliz. Há já algum tempo que deixei de ser tão autêntica. Tenho saudades de mim.


28.10.14

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Na rua e em casa.

Na rua e em casa.
Todos os anos antes de iniciar o período escolar era preciso comprar os sapatos para o colégio. Tinham de ser azuis escuros, da mesma cor que a farda. Eram sandálias inglesas e comprados invariavelmente na Sapataria Modelo. O meu pai não era adepto de saldos para sapatos, comprava-se quando era necessário. Eu vinha ter ao trabalho dele, à Manteigaria Zarco, ou vinha acompanhada de uma das minhas irmãs, escolhia os sapatos, ele depois passava por lá e pagava. Todas as compras eram efectuadas na artéria da Rua Dr. Fernão de Ornelas, à excepção da Casa Mendonça, onde o meu pai comprava os casacos de fato e os coletes de malha. Lembro-me perfeitamente de na altura, estudante de liceu, surripiar os coletes de malha Wollmark, azuis, bege e verdes. Aqui para nós, sei que faziam um sucesso enorme.
As compras lá para casa vinham também da Manteigaria Zarco, depois de a minha mãe fazer uma lista e de uma triagem especial feita pelo meu pai. Na mesma rua, ficava o Carlos Fotografo, o Dr. Adolfo Brazão, a Farmácia Morna, a Casa Tininha, o Sino a Pretinha do Café, e o mercado. Os livros e restante material escolar era um pouco mais longe, lá para os lados do Largo do Colégio, na Papelaria do Colégio com o Sr. Correia, nosso vizinho de rua e já falecido.
Não havia quem não conhecesse o meu pai naquela rua, ele andava de loja em loja, só de camisa e gravata, vestia o casaco quando saia às 13 horas para vir a casa almoçar. Nunca o meu pai foi trabalhar sem gravata, o casaco e um molhe de chaves na algibeira. Recordo-me tão bem do barulho que faziam aquele molhe de chaves sempre que ele entrava em casa.
O meu pai nunca conduziu, nunca teve um carro, mas os amigos e vizinhos das lojas da Rua Dr. Fernão de Ornelas, todos os dias davam-lhe boleia para casa, raramente vinha de autocarro, à excepção dos domingos quando ia à missa. Aos domingos íamos sempre à última missa, quase sempre à Igreja do Colégio e chegávamos sempre atrasados. A minha mãe para se despachar ia às vezes à Igreja de Santa Luzia. Quando a missa terminava havia sempre a mesma discussão, se íamos ao Café Apolo ou vínhamos de táxi para casa. A minha mãe era uma mulher de poucos luxos, mas gostava daquele bocadinho dentro da Apolo, onde ela tomava uma chinesa e um bolo de arroz e ficava a olhar para as roupas das senhoras que por lá passavam na expectativa de tirar o modelo para pedir à D Cecília um vestido igual. A minha mãe tinha o condão de que, tudo o que via nos outros ia-lhe ficar bem, era o modelo, a cor, o tecido, e depois quando ia à loja para comprar nunca encontrava nada igual ao que tinha visto. Não era fácil satisfazê-la. Até as filhas dos outros eram sempre melhores que as dela. Era uma batalha perdida para nós, sempre foi assim durante toda a vida.
Bonita, alta, elegante, mas muito perdida no espaço onde vivia, não gostava da cidade, preferia ter antes ficado no local onde nasceu, em Santa Cruz, tal como viviam as irmãs e o irmão. Mulher demasiado selectiva, discreta, e cujos sonhos ficaram sempre aquém da vida que teve. Não gostava de praia, nem de festas, mas adorava cantar e cantava tão bem o fado. Sempre os fados da Amália, só cantava quando estava descontraída e reunida com a família em Santa Cruz, nunca perto do meu pai. Ele achava que aquilo não era coisa para uma senhora, casada mulher de respeito e mãe de filhos. Cantar para o meu pai, estava associado à noite, à galdeirice e a estilos de uma vida boémia.
A minha mãe raramente saía de casa, descia ao Funchal para vir ao médico ou à caixa com algum filho, para vir ao Salão Morena na Rua do Aljube, para ir à casa das Linhas, comprar fechos, botões, carros de linhas, entretela e forro para as roupas que cuidadosamente fazia para nós, para ir à casa da Vizinha Graça junto à Ponte de Pau, para ir à costureira, esta ultima vivia um pouco mais longe, por isso às vezes era ela que vinha a nossa casa.
Era tão selectiva que até os cozinhados eram escolhidos a dedo, não variava muito os pratos mas o que fazia era perfeito. Não gostava de marisco e não era qualquer peixe que ela autoriza entrar na sua cozinha. Lembro-me dos melhores filetes de espada que comi até hoje, espalmados, lourinhos e estaladiços, de uma carne assada que se desfazia na boca, de um arroz acastanhado, de umas bolinhas de carne, de um pudim de pão com uma cobertura de claras em castelo (suspiros), de um pudim de bolo com custard, de umas fatiotas fritas no molho da carne de vinha de alhos. Ela sabia no que era perfeita e jogava com isso, muitas vezes o meu pai queria ter convidados em casa, a contragosto dela, e era o cabo dos trabalhos para a convencer a receber uns comensais para o almoço. Dava muito trabalho, ela atrasava-se sempre, e ele discutia, porque as pessoas estavam esfomeadas e era feio estar muito tempo à espera, mas assim que as travessas chegavam à mesa, ninguém mais ouvia a voz do meu pai, o que se ouvia eram só elogios e todos para ela.
E eram assim os meus pais tão diferentes entre si, ele um homem de rua, extrovertido, folião, sempre um homem com muito apetite, ela uma mulher da casa, recatada, com um humor muito cáustico, que só comia não porque tinha fome, mas porque era preciso comer qualquer coisa. Nas diferenças tinham qualquer coisa em comum, uma tenacidade e capacidade de lutar pela vida, pelo bem-estar dos filhos e por um futuro melhor.
Não é por acaso que ele com 92 anos e ela com 87 vivem ainda os dois juntos, ainda na sua casa e ainda com a companhia diária dos filhos e com almoços em família aos fins de semana, sempre, sempre na casa deles, na casa onde educaram os filhos e hoje recebem e acarinham netos e bisnetos.
15.10.2014


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A casa do meio,

A casa do meio,
Era a casa maior e mais moderna, era de um piso só, com janelas beijes e paredes cor-de-rosa. Havia um quintal de cimento à volta de toda a casa e um varandim a separar para o jardim e as árvores de fruta.
Aos sábados aquela casa renascia, abriam-se os tapassóis, estendiam-se as colchas e os cobertores nas janelas para arejar, os tapetes vinham à rua, varria-se todo o quintal, limpava-se areava-se tudo e mais alguma coisa.
Eu não gostava nada daquelas lides de todos os sábados, apetecia-me fugir e regressar à noite. Ao sábado não podíamos ir à praia, porque era dia de limpezas, e eu nunca compreendi porque ponham as crianças a arrumar a casa.
Por vezes ainda tínhamos de ir ajudar numa limpeza a casa de um tio solteiro ou auxiliar uma prima que vivia só com um irmão numa casa grande.
Só gostava que me mandassem à venda para comprar alguma falta de última hora, a lixívia, o sabão azul, a cera para o chão ou uma garrafa de laranjada para o almoço.
Também gostava de quando o dia finalmente terminava, e lavávamos o quintal de balde e de mangueira, quando sentíamos de facto a casa fresca, os quartos limpos, a cama com roupa a cheirar a lavado e primorosamente engomada pela minha prima.
Gostava imenso e divertia-me a lavar o cabelo. O cabelo era lavado na rua, no quintal à frente da cozinha, numa banheira. Eu e a minha prima seguíamos um ritual para aclarar as pontas de cabelo, deitar cascas de cebola na água e lavar com aquela mistela. Sempre acreditamos naqueles feitos e julgamos durante muitos anos ter uma cor de cabelo mais clara que a das outras primas.
Uma delas usava um champô de camomila que dizia manter a cor de louro, mas o cabelo dela era bem mais claro que o nosso, ela já trabalhava, bem podia dar-se a esses luxos, nós usávamos sabão azul, diziam que o cabelo ficava brilhante.
Nesta casa jantávamos sempre muito tarde e nunca nos deitávamos no mesmo dia em que acordávamos. Ainda hoje, é assim, as primas são sempre as últimas a se deitarem, alias a tia é sempre a última.
Já de noite, recordo-me de finalmente agradecer por aquele dia ter passado tão rápido, desejando que o Domingo chegasse logo para ir à missa das nove ou das onze com a tia e as primas. A igreja enchia de gente, as primas, sempre atrasadas ficavam num cantinho atrás do lado esquerdo, à saída íamos ao café do “Matos” comer um gelado e às vezes ainda passávamos pela praça do peixe
Faltava ainda um pequeno senão, quando não tínhamos boleia do tio, na furgoneta Peugeot ou no BMW do primo, subíamos o caminho do Janeiro a pé, era dose, acreditem!
O almoço era sempre um banquete, com direito a sobremesa, pudim ou bolo. À tarde íamos ao Santo, às vezes à Portela beber uma ponha, ou o primo levava-nos ao Hotel Holiday In ou à Matur para beber um café e passear.
No final do dia e já em casa, aparecia sempre gente no terreiro, emigrantes vindos da Venezuela e do Curaçau, amigos do tio, família do Funchal e da Recta do Santo da Serra, e vizinhos. Vinham dar dois dedos de conversa, bebericar um copo de vinho e saborear um pratinho de azeitonas, outro de tremoços e um dentinho de queijo.
Apareciam mulheres, a prima da casa de baixo, uma outra prima muito alta de cabelos compridos e as vizinhas solteiras e ainda duas irmãs muito faladoras, uma delas mais evoluída na vida, trabalhava nas limpezas no Aeroporto, já tinha feito algumas viagens. Contava como o mundo era diferente no Canadá, que o frio não se sentia, era tudo aquecido e as pessoas apesar de trabalharem muito, viviam muito melhor do que em Santa Cruz, donde tinham saído há alguns anos atrás.
Falavam da vizinhança que tinha emigrado para a Venezuela e para o Curaçau, falavam da vida que eles por lá tinham, dos namoros, dos casamentos, dos filhos nascidos em terras estranhas, às vezes levavam fotografias e cartas e pediam às minhas primas para as lerem e darem uma resposta breve.
Eu gostava de ouvir as conversas, e de fazer perguntas, gostava do licor de caramelo e do licor de tangerina que bebia e devorava até não haver mais liquido.

10.10.14

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A casa da avó,

A casa da avó,
A avó vivia numa casa de uma família inglesa. A bem dizer a avó era governanta nessa casa. O avô era o cozinheiro, mas depois dele falecer, ela passou a substitui-lo e a menina Carolina ficou no lugar da avó.
A casa ficava situada na Travessa do Rego, nº 9, era uma quinta, com um grande jardim, com palmeiras e árvores de fruto, também tinha no fundo do jardim uma casinha de prazeres, um lago com patos e uma capoeira com galos e galinhas. À frente da casa ficava a Escola Industrial do Funchal, atrás era a casa de bordados, ao lado esquerdo o Hotel do Carmo e no lado direito a Serragem da Madeira.
Uma das sobrinhas da senhora inglesa tinha menos um ano do que eu, era bonita, loura, usava tranças e foi uma das minhas companhias de infância. Subir às árvores, correr e andar de bicicleta entre os canteiros, eram as nossas brincadeiras.
Eu tinha um fascínio por aquela casa. Toda ela era muito clássica. Para chegar à porta principal havia uma escadaria, larga o suficiente para transmitir a sua imponência. No primeiro andar situavam-se as salas e no segundo andar os quartos de dormir, ainda havia um rés-do-chão onde se localizavam os quartos dos empregados. Esta última zona não me agradava nada visitar, era sombria, escura, triste, quase não havia luz, as janelas eram pequenas, com aberturas para o exterior e com um gradeamento de ferro que dava para um beco. O beco separava a casa do Hotel do Carmo.
Sempre que tentava espiolhar para as saletas ou para a sala de jantar os meus olhos prendiam-se nas poltronas forradas a veludo vermelho e dourado, nas pratas distribuídas pelo sideboard e outros móveis ao bom estilo inglês, nos candelabros, no relógio de caixa, um grandfthader, tudo aquilo para mim era um outro mundo. Parecia um quadro extraído dos filmes ingleses que víamos na televisão, tipo Madame Bovary. A escadaria que ligava aos quartos de dormir, toda ela forrada por uma passadeira de veludo vermelho, só de olhar ficava intimidada e não ousava passar do primeiro degrau.
De vez em quando assustava-me com o toque das sinetas, eram as senhoras a anunciar que precisavam de qualquer coisa, as “criadas” que estavam na cozinha avançavam de imediato para satisfazer os pedidos.
A cozinha era o espaço onde a minha avó reinava, era grande, tinha um enorme fogão a lenha, com gavetas, e portas, tinha pendurado no teto uma espécie de gaiola, forrada a verga muito fininha, lá havia sempre um pratinho tapado com restos de comida, sempre tive curiosidade em descobrir se aqueles alimentos eram para as empregadas, mas nunca vim a saber ao certo. Mesmo no meio da cozinha havia uma mesa de madeira grande com duas gavetas. Era dessas gavetas que milagrosamente saíam bolos, scones e outros doces feitos pela mão da minha avó. É engraçado como desde muito cedo eu descobri o vício dela em esconder comida. Anos mais tarde, já a viver em casa dos meus pais, ocultava comida nos bolsos dos vestidos, dos aventais e pelas gavetas dos armários.
Sempre sentada à volta da mesa a preparar legumes, a mexer massa de bolos, ou a fazer sandes, estava a menina Carolina. Destes tempos idos recordo-me do chá preto com leite e dos scones que a minha avó me presenteava quando ia fazer-lhe uma visita.
A Miss, a senhora inglesa, era professora de inglês na academia e dava explicações em casa. Todas as minhas irmãs, à excepção do meu irmão mais novo e de mim, foram alunas dela. Algumas vezes aparecia pelo jardim para passear e descontrair as pernas enquanto esperava pelos alunos. Era muito branca, tinha uma camada rosa de pó de arroz espalhada pela cara e cheirava a colónia de bebé. Era solteira, nunca tinha casado.
Recordo-me também das meninas inglesas mandarem roupa para a minha mãe, a qual habilidosamente desmanchava e fazia vestidos dignos de capa de revista.
Depois de a minha avó ter morrido, a Miss ainda por lá ficou uma serie de anos sempre a dar explicações. Adoeceu, ficou só e desamparada, entretanto descobri que foi internada num lar em Machico e morreu anos mais tarde. A única visita que tinha esporadicamente da família era um sobrinho. O sobrinho era o irmão da inglesinha que brincava comigo, muito mais velho do que ela, era um bonito homem, tinha uns olhos verdes muito lindos.

Fiquei sempre sem saber o que foi feito daquele espólio todo que havia na casa, se venderam ou se distribuíram pelos herdeiros. Hoje a casa já não existe, foi demolida e construído um outro edifício. Sei apenas que, daquela família a única pessoa residente na Madeira é o sobrinho, passo por ele algumas vezes de carro, eu reconheço-o mas ele não me conhece.
A irmã, a inglesinha, vive em Lisboa, há uns anos esteve aqui na ilha e telefonou para casa dos meus pais, queria encontrar-se comigo. Estivemos juntas, qualquer uma de nos já tinha dois filhos.
Achei curioso e fiquei feliz quando me apercebi que o marido dela chamava-se António e cada um dos seus filhos tinham o nome da minha avó, Maria e do meu avô, António.
02.10.2014








terça-feira, 30 de setembro de 2014

E tudo se foi...

E tudo se foi….
Os pais dele eram padrinhos do meu irmão mais novo e nossos vizinhos de rua. Viviam umas 3 casas abaixo da nossa, na Rua da Carne Azeda. Era uma quinta grande que cruzava com a rua do Til. A casa estava interiormente dividida em duas, de um lado vivia os padrinhos do meu irmão, do outro lado o cunhado deles.
Naquela casa aprendi a andar de bicicleta, a brincar só com rapazes aos índios e aos cowboys. Nas férias íamos para lá brincar, havia muito espaço, do lado casa do Til, até tinha uma fazenda, um levadeiro, um jardineiro, era tudo muito grande.
O casal tinha apenas dois filhos, rapazes, um muito tímido, de poucas falas e outro mais extrovertido. O mais novo era o amigo do meu irmão e eu atrelada ia para lá passar as tardes.
Lembro os lanches que a mãe nos servia, ou a empregada, tinham sempre uma empregada diferente, iam mudando com frequência, os gelados de leite e de chocolate confeccionados em casa, os bolos de leite com queijo e os sumos de laranja, a maior parte das vezes comíamos no jardim, outras vezes íamos lanchar à copa, não se comia na cozinha.
A mãe, a madrinha do meu irmão, não trabalhava fora, mas depois dos miúdos crescerem, ela durante o período da tarde ia para a loja. A loja era uma casa de bordados muito antiga, junto à Sé, onde hoje funciona a Godiva. A senhora era muito elegante, arranjava o cabelo sempre ao alto e espalhava uma dose generosa de laca. Ainda havia na casa uma figura bem carismática, era uma tia deles, irmã do pai, solteira, muito bonita e magrinha. Quase mandava mais na casa do que a madrinhas do meu irmão. O padrinho era um homem magro, com uma voz muito fininha, tinha um Opel Kadett, beije clarinho, era muito amigo do meu pai, presença constante todos os domingos em minha casa antes do almoço. Tratava a esposa pelos dois primeiros nomes próprios, tinha algumas semelhanças com o meu pai, de estatura baixa e careca.
Tinham um estilo de vida muito superior ao nosso, organizavam festas nos aniversários, com empregados a servir, passadeiras vermelhas, tudo cheio de muito glamour.
Um dia, a madrinha do meu irmão deu entrada numa clínica para ser submetida a uma cirurgia normalíssima, à vesícula. Tudo correu muito bem, até que no pós-operatório, a senhora manifestou sinais febris, e de repente faleceu, julgo, que com um diagnostico que nos dias de hoje se apelida de sépsis. Foi uma morte algo suspeita mas a família não quis se pronunciar.
A partir da morte da matriarca da família, aos poucos tudo se foi desmoronando. A Tia continuou a viver com o irmão, que entretanto foi afogando as suas mágoas no álcool e no jogo. De repente foram perdendo os bens, ouvimos dizer que o senhor tinha arranjado uma namorada mais nova e daí até o desentendimento da família foi um ápice.
O amigo do meu irmão era o filho mais novo, foi para Lisboa estudar, tirou um curso de técnico de aparelhos dentários, abriu um laboratório no Funchal sem grande sucesso e tudo o que se seguiu teve a mesma sina, um restaurante, uma loja de flores, etc, etc…
Hoje o rapaz está numa idade próxima a 50 anos é solteiro, vive em Lisboa numa pequena casa alugada, trabalha e a vida não lhe tem sorrindo tanto como nos tempos de outrora, como na sua infância de ouro. É uma excelente pessoa, demasiado honesto e extremamente ingénuo para a idade que tem.
Havia também uns primos, filhos de um economista ou gestor, eram 4 rapazes que de vez em quando juntavam-se às nossas brincadeiras. Eu continuava sendo a única rapariga. Também esta parte da família teve um fim um pouco inusitado. O pai assumiu-se sexualmente e separou-se da mãe, um dos filhos fez o mesmo, outro foi diagnosticado já na idade adulta uma do foro psiquiátrico saíram da Madeira e foram viver para Lisboa.
Hoje a casa está transformada numa creche e jardim-de-infância, o amigo do meu continua a viver em Lisboa, não tenho ideia de ter vindo à Madeira nestes últimos anos e o filho mais velho está com uma vida familiar e profissional bastante estável.

30.09.14






No regresso a casa,

No regresso a casa
Nos anos oitenta rumei a Lisboa, sozinha, uma miúda com 17 anos a iniciar uma nova vida.
Era mesmo uma nova vida em tudo. As primeiras experiências, o viver fora da casa dos pais, sem o apoio da família, gerindo uma mesada, sendo responsável e sabendo que estava ali por minha conta e com um dever, nunca chumbar um ano.
Não sabia ao certo o que me esperava. Era assim, não havia escolha, partilhar um apartamento com duas madeirenses, com quem nunca tinha falado nem tomado um café. Bastava o facto do meu pai conhecer as famílias, eram pessoas honestas, decentes e com boa reputação.
A coisa não correu nem bem nem mal, correu, ou melhor, correu como tinha de correr. O apartamento apesar de pequeno estava muito bem localizado, era num primeiro andar, tinha 2 quartos, sala cozinha e uma casa de banho.
Dividia o quarto com uma outra rapariga, que já lá estava num segundo ano de um curso muito exigente de ciências exactas. Só por isso eu já lhe tinha em muita consideração.
Eu que nunca soube lidar bem com os números, os cadernos quadriculados assustavam-me, as trigonometrias, as álgebras, as análises, só de soletrar o nome das disciplinas já me metia em sentido.
Olhava para ela e pensava, deve ser muito inteligente, para estar a estudar e lidar com números, equações, regras, cossenos, expoentes, funções e limites.
E ainda havia as fórmulas da química e as leis da física, ela tinha mesmo um QI acima da média
Eu, rapariga das letras, um pouco para enfrentar o meu pai, na sua autoridade e intransigência, bati o pé e disse que ia para um Curso de Sociologia e que depois vinha trabalhar para a prisão.
Ele que tinha interiorizado que a filha seria uma advogada, ficou desiludido, não tanto pelo curso escolhido em si, mas por saber que esta coisa da sociologia era estudos para pessoas de esquerda, comunistas e que de empregabilidade deixava muito a desejar.
Nunca chumbei nenhum ano e quando terminei não fui trabalhar para a cadeia, mas também não estive inserida em nenhum movimento revolucionário e a política nunca foi o meu forte.
Menos mal, o desgosto não foi assim tão grande e aqui cheguei passados 5 anos a até arranjei emprego.
Contrariamente a muitas amigas minhas madeirenses, a ida para Lisboa foi dos melhores tempos que vivi.
As colegas choravam, não se adaptavam, queriam regressar. Eu não digo que as saudades não me apertavam o coração, mas eu queria mesmo era viver. Viver o que ainda não tinha vivido.
Em casa dos meus pais, não saía à noite, como as minhas amigas, não ia bailes nem a festas, nem a viagem de finalistas, raramente ia ao Golden Gate e ao Apolo, apenas tinha liberdade para andar nos escuteiros e fazer acampamentos.
O escutismo era uma coisa para gente séria, tinha uma vertente religiosa, ajudava a formar o carácter de uma pessoa e o contacto com a natureza era saudável.
Em Lisboa dia a dia fui ganhando asas para um voo cada vez maior. No início ainda vinha as três épocas de férias à Madeira, depois passei só a vir duas vezes por ano, no Natal e nas férias grandes.
Na faculdade procurava não me juntar muito ao grupo dos madeirenses, nunca pertenci ou estive na casa da Madeira, nem fiz parte de convívios com os estudantes madeirenses. Eu queria era conhecer outras pessoas, gente nova, mais desempoeirada, livres de preconceitos e mesquinhices de um povo que está sempre atento ao que os outros dizem.
Convivia muito com um primo bem mais velho, que morava em Lisboa, fazia uma boa dezena de anos e já trabalhava há muitos anos. Às vezes, quando podia, fazia gazeta à faculdade, de preferência a uma 6ª feira e ia à pendura com ele numa viagem, ora pelo Algarve, ora pelo Alentejo, umas vezes a Setúbal, até cheguei a ir ao Marvão a Vila Nova de Mil Fontes e a Castelo de Vide.
No regresso a casa, à rua da Carne Azeda, nome de rua que durante anos tinha tanto pudor em pronunciar, sentia o cheiro a limpo, a cera de alfazema, a flores dentro de casa.
A minha mãe, uma mulher muito bonita, doméstica de profissão, a quem as vinte e quatro horas de um dia nunca lhe rendiam, andava sempre atrasada nas lides domésticas e nas horas das refeições.
Mas a casa, estava sempre imaculadamente limpa, o quarto cheiroso, as roupas brancas, os lençóis bem estendidos na cama, em cima da mesa-de-cabeceira e da cómoda um conjunto de naperons em bordado madeira e outros que a minha tia do Curaçau trazia quando nos visitava. E eu dava umas voltas pelo quintal para ver as flores novas, perguntava pelas vizinhas, pela família e pelos sobrinhos. Estão todos bem, estão todos muito grandes, dizia a minha mãe.
Na manhã seguinte acordava com as crianças mais pequenas a invadirem-me o quarto e ainda ensonada, descia e vinha para a cozinha tomar o café e ler o diário de notícias, quando a minha mãe ainda não o tinha emprestado à vizinha.
De Lisboa sentia saudades, da cidade onde eu passava anónima, dos colegas do Norte e de outras zonas com quem eu convivia na cantina do Lumiar, dos autocarros grandes e rápidos a se perderem nas avenidas, de passear e ver lojas pela Avenida de Roma de ir ao Centro Comercial Apolo 70, de ir ao cinema ao São Jorge e ao Londres, de ver o rio Tejo, de andar sem destino pela baixa, de colar a cara na montra dos Porfírios e de comer um hambúrguer no Great American Disaster com a minha colega de quarto.

30.09.14

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

No Janeiro,

No Janeiro,
Era um terreno único e eu andava de casa em casa, sem ter de passar pela estrada.
A vida fazia-se por dentro, entre os terrenos, entre os poios, as veredas, saltando muros e subindo tapadas.
Um dia, não sei porquê, mas com muita indignação da minha parte, deixamos de ter acesso, as modernices, a construção de uma nova casa para uma prima, cortou a ligação interna para caminho da casa das tias.
As casas principais eram três, ainda havia mais uma de um primo, mas não tão perto e teríamos de ir forçosamente pela estrada.
O almoço era escolhido como se um restaurante fosse todos diferentes e com ementas variadas. Eu ia passando por cada uma e perguntava “tia o que é o almoço?”.
Ficava e saboreava a refeição onde o melhor menu me aconchegasse o estômago.
À noite e para dormir gostava de parar na última casa. Aproximava-me do terreiro e exclamava “uhuhuh…Tia”, ouvia-a ao longe “vem Luisinha estamos na cozinha”.
Era uma casa pequena, de sobrado e com janelas de tapassóis verdes a abrir para um terreiro comprido.
À frente um muro de cimento, com tapetes e mantas de retalho. Ali ficávamos sentados a conversar dia e noite fora. Eu sentava-me sempre encavalitada em cima do muro.
Havia um terraço, avistávamos o mar, observávamos os aviões a aterrar, ouvíamos o porco a roncar, uma vaca no palheiro, havia o cheiro a terra, a vinho, a uvas e a fruta da época.
Havia sempre um cão, geralmente preso de dia e solto à noite e muitos gatos, muitos gatos dentro de casa, felizmente não subiam para os quartos.
Havia uma fazenda grande, com árvores, anoneiras, nespereiras, peras abacates e à frente da cozinha um jardim com muitas flores.
Lembro-me do tio José, sentado numa banca à saída da porta da cozinha de barreta na cabeça e a fumar e homens a bater à porta. Entravam, bebiam um copo e faziam-lhe companhia. Às vezes também vinham as mulheres, conversavam com a tia e também bebiam.
Outras vezes os mesmos homens e mulheres vinham para dar a dias, para trabalhar no terreno, para mondar e regar as bananeiras.
Eu gostava daquela casa à noite, ninguém se deitava cedo, à excepção do tio, todos iam para a cama tarde.
Lembro-me de a casa não ter luz eléctrica e mais tarde lembro-me das faltas de energia que nos surpreendia a todos, sobretudo nos dias invernosos e chuvosos.
E era disso que eu gostava, menina de cidade, adorava os ambientes do campo.
Gostava daquela cozinha, do lar, do forno a lenha, das panelas de ferro e de alumínio arreadas tão delicadamente que nos serviam de espelho, dos móveis pintados de azul anil, da mesa grande e comprida e das torradas feitas nas brasa do lar e sorvidas com uma grande chávena de café com leite. O café era de saco e o leite era de casa, da vaca que estava ali ao lado.
O ir para a cama era um dos episódios mais engraçados, subíamos as escadas, levantávamos o alçapão, entravamos directamente no quarto dos tios e passávamos para o nosso, sem corredora, era porta com porta.
Subíamos sempre de candeeiro a petróleo na mão, que nos alumiava ate a hora de já estarmos dentro dos lençóis.
Na minha casa no Funchal, os quartos não eram assim, havia uma corredora que os delimitava uns dos outros.
Eu gostava daquela intimidade, de ouvir a minha tia a ressonar e do meu tio a rezingar. Gostava daquela partilha de espaços pequenos.
O soalho rangia, as portas chiavam, os mínimos ruídos eram barulhos intensos no silêncio da noite.
O quarto era pequeno, mas acolhedor, tinha duas camas cada uma encostada à parede, uma escrivaninha muito alta, um guarda fatos daqueles que tem ao centro um grande espelho e mais um móvel pequeno.
A casa tinha uma casa de banho na rua, à noite quando havia vontade de fazer chichi, utilizávamos um penico que ficava debaixo da cama, a casa do Funchal não tinha nada disto.
Lembro-me ainda do luar, o luar que entrava pelas frestas dos tapassóis e fazia com que no quarto fosse quase sempre dia.
Conversávamos e riamos, riamos muito, até que o meu tio nos mandava calar.
De manhã, era a última a levantar.me, estava de férias, não havia escola, nem horários para cumprir.
Recordo com saudade o aroma do café acabado de fazer e do cheiro a ovos fritos, quando descia, dizia logo “tia eu quero um ovinho molinho e torradinhas com manteiga”.
A tia era uma mulher muito pequena com as pernas ligeiramente arqueadas, tinha um cabelo muito comprido que usava todo enrolado fazendo um carapito no alto da cabeça ou entrelaçado terminando da mesma forma.
A tia ria muito, estava sempre bem disposta, nunca gritava, não brigava, era uma mulher da terra, do campo, de muito trabalho.
Mesmo quando a tia ficou doente, e muito doente, a tia ria sempre, com gargalhadas, mas com tanta vontade que às vezes lacrimejava de tanto rir.

26.09.14

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Chegou,

Chegou,
Chegou e esperou por mim. Há muito que estava prometido um fim de semana relampado mas intenso.
Combinado o dia e acabamos por ficar só as duas.
Jantamos em casa, pusemos a conversa em dia, recolhemos quando passava pouco da meia-noite e no dia seguinte estávamos a pé pelas 7 da manha, arrumando mochilas e juntando um farnel.
Fizemos uma caminhada, um caminho real, o nº 24, o caminho foi interrompido pela chuva torrencial. Ainda demos prova pela segunda vez à poncha e a mais uns momentos de confraternização com o grupo das VL.
À chegada ao Funchal apenas tivemos tempo para um banho quente, descemos à cidade, rumamos ao Jardim Municipal, quando dei por mim estávamos a ouvir uma música de folclore regional. Ainda insisti para que ela dançasse mas o rapaz, desviou o olhar.
Calcorreamos as ruas da baixa, observamos os edifícios de traça antiga, as cantarias, as janelas de guilhotina, os parapeitos e as varandas coloniais.
Ela ia sempre disparando aqui e acolá, cruzando o olhar sobre os pormenores.
Deambulamos pela avenida em obras, o Palácio de São Lourenço, o Banco de Portugal, o café do Teatro e o Ritz.
Quando caiu a noite entramos numa rota turística, a espetada, o bolo do caco e o milho foi saboreado sequiosamente.
De regresso à cidade e à zona velha, passamos pela Rua de Santa Maria, pelo hostel, onde penetramos desavergonhadamente e percorremos todos os espaços, terraço restaurante e bar.
Na Venda Velha, ela gostou do chão, apinhado de cascas de amendoim, das caixas em lata da fábrica de bolachas, fascinou-se por um candeeiro de tecto feito em porcelana e pintado à mão, gostou também de caixa antiga de televisão, que exibia um programa atual em versão colorida.
Não nos alongamos muito pela noite, não tínhamos hora de acordar para o dia seguinte, mas não queria deitar-me tarde.
Ainda de dormir ainda passamos pelo terraço, estivemos a olhar o céu, ouvir o silêncio e arrebatamos mais dois dedos de conversa.
Camara de Lobos foi a primeira paragem, a enseada, o cais, o ilhéu, a igreja e a Niquita.
Ela gostou, ela continuava a disparar.
No miradouro, a vista deslumbrou-a, observamos ao longe a saída da cidade, as freguesias limítrofes, a entrada da cidade não era visível, mas nem por isso sentimos a sua ausência.
Levei-a à Quinta da Rochinha, só para ver a vista, viemos ter diretamente ao Jardim do Mar, na mesa caíram as lapas, o bolo do caco os caramujos e um picadinho.
Sempre de seguida fomos ter ao Paul do Mar, quase de mojito na mão, saímos e viemos até a Praia dos Anjos.
Ela ainda tentou tomar um banho, não sei se por vergonha do desequilíbrio que sentia nos calhaus que rolavam e a que não estava seguramente habituada, retrocedeu e molhou ligeiramente as pernas.
Deliciou-se com a decoração, a banheira de banho, as mesas em troncos de madeira, os gatos, e eu, que não gosto de gatos dei por mim a fazer-lhes festas.
Bebi o meu gin, ela não quis, achei prudente ia conduzir uma viatura que não lhe pertencia. Lamentei não termos tido tempo de assistir ao por do sol, mas ainda observamos o mar cor de prata a perder-se no horizonte.
Ele chegou pontual e já lá estava, à nossa espera. Chegaste com meia hora de atraso, replicou e cheiras a álcool….
Em casa fizemos a ultima refeição do dia, tentei uma bola de carnes, não disse nada, mas não ficou muito famosa.
No último dia reservei uma praia, o dia estava solarengo, fomos a banhos, a água estava límpida e tépida.
A Ângela fez-nos um bacalhau com broa, bem apurado, como já sabe fazer muito bem.
Tinha combinado com a minha irmã para vir busca-la e no final do dia fomos a deixar de volta a Lisboa.
Tentei proporcionar-lhe um fim de semana inesquecível, fiquei com a ideia de que ela gostou pelo menos pelas fotos que tive o prazer antecipado de olhar de esgueira.
Não me deixou dúvidas, penso ter gostado mesmo.
Foi tudo muito rápido, falamos de tudo e de nada.
Falamos das viagens, das cores, dos cheiros dos sabores, de Paris, do trabalho dela, do novo namorado que ela tem.
Falamos muito da família, da avó, dos amigos e dos afectos.
Vivemos e falamos da vida, essa vida que um dia há de levar-nos a encontrarmo-nos num outro lugar, diferente de hoje, aqui e agora.

23.09.14

Uma questão de atitude.

Uma questão de atitude. Iniciamos o percurso com um vento forte e frio, um pouco desagradável. Levamos com terra e poeira como se esti...